Sobre fazer filosofia "ruim"
Ontem li uma postagem de Liam Bright, entre outras coisas um blogueiro em filosofia bastante perspicaz, sobre a falta de estímulo e desejo para publicar em filosofia. Uma das razões que ele levanta para não sentir desejo de escrever e publicar é uma percepção sobre a qualidade do seu trabalho. Segundo ele, trata-se de um trabalho que, quando muito, é “na média”. É importante deixar claro, porém, que isso não é simplesmente uma reclamação de alguém que assume essa postura por um desmerecimento do meio, de alguém que seria profissionalmente incompetente, que é incapaz de se situar no âmbito institucional da filosofia. Bright é um filósofo de sucesso: jovem e com um emprego numa instituição prestigiosa, ganhador de bolsas que indicariam uma qualidade no campo em que ele atua. Apesar disso, o que vemos no texto é uma razoável distinção entre produzir publicações filosóficas interessantes (seja qual for o critério adotado para isso1) da capacidade de se situar de maneira eficiente em um campo (algo que diz muito menos sobre uma certa qualidade filosófica — embora não necessariamente seja isenta disso — e mais sobre uma legibilidade intra-comunitária). Partindo de um princípio metafilosófico carnapiano, de que a filosofia é uma construção colaborativa em que cada contribuinte adiciona apenas aquilo que consegue justificar diante do trabalho acumulado de seus colegas filósofos, ele chegaria a conclusão que os tijolos que ele produz ou são redundantes (quando na média) ou atrapalham o trabalho coletivo ao aumentar a pilha interminável de textos publicados2. Nesse sentido, se não há nenhum prazer no processo (e não precisamos repetir aqui as dificuldades de se publicar no ambiente acadêmico) e o ganho coletivo também não é notável, parece bastante razoável que ele prefira gastar sua atenção em outros pontos. Como ele já estaria numa situação profissional em que pode se concentrar em dar aulas e orientar (sem risco de ser demitido), ele estaria se conformando com a possibilidade de deixar de publicar em âmbitos institucionais — mantendo, como ele admite, a possibilidade de escrever num ambiente informal de um blog.
Sem entrar no mérito de seus textos (visto que só acompanho seu bom blog, onde ele se concentra mais em reflexões metafilosóficas-institucionais), acho que esse texto traz algumas questões que de alguma forma me incomodam (sem, contudo, a estabilidade que ele possui). Entendo, portanto, que esse texto não faça sentido para muitas pessoas (que não tem essa frustração ou que conseguem compreender que essa frustração nelas é originada apenas de circunstâncias institucionais3). Para além dos périplos profisssionais, não consigo deixar de me identificar com uma certa frustração com relação ao meu próprio caminho na filosofia. Se olho para o que faço eu até consigo enxergar méritos pontuais (conseguir aqui e ali dar uma formulação precisa para um problema, ou conseguir tornar um pouco mais inteligível alguma passagem), mas é difícil distinguir isso de uma simples postura escolar competente que poderia encontrar semelhança com outros tantos esforços (mesmo que diferentes no conteúdo ou no detalhe, de mérito e forma semelhante)4. Não acho que essa frustração seja um acaso. Quando olho para a minha formação, sempre senti que devia conciliar meus ímpetos filosóficos com as demandas do mercado. Que deveria buscar uma espécie de ponto ótimo em que conseguiria me situar no espaço institucional da filosofia (com as devidas diferenças entre o mundo anglo e o nacional) sem abrir mão de coisas que para mim eram caras. Tirando o fato que a situação mudou ao longo do caminho (a diminuição de oportunidades fez com que a posição que adotei acabasse parecendo já deslocada demais), é certo que mesmo que tivesse conseguido um sucesso profissional almejado (não apenas um emprego, mas um certo respeito e consideração dos meus pares, uma valorização intra-comunitária do que faço) ainda não estaria satisfeito com o que fiz5. A impressão geral que fico de mim mesmo enquanto filósofo profissional, sobretudo considerando as publicações (ou melhor, se só tivesse as minhas publicações como algo para avaliar) é que ela tende a ser ruim, fraca, derivativa6.É terrível essa sensação de produzir algo insuficiente.
Isso não é, porém, apenas, uma questão de vaidade (embora seja inegável que também haja algo disso), por duas razões. Primeiro pois a filosofia é para mim um amor. Ainda que escrever certos tipos de texto seja uma experiência maçante, nos últimos anos tenho aos poucos voltado a entender que não quero outra coisa da vida. Tanto dando aulas, como estudando, e até rascunhando, há algo sobre estar em contato com esse campo (por meio de conversas ou de leituras) que me gera uma felicidade indescritível. Querer escrever é parte disso, é uma das formas que em alguns momentos essa felicidade vai se expressar. Assim, por mais que eu possa relutar, tem momentos que a escrita vai aparecer como o espaço apropriado para me relacionar com a filosofia. Nem só de recepção passiva vive esse amor, tem momentos em que eu me sinto estimulado a dizer algo, responder algo. É por isso que pra mim a sensação de fracasso é importante. Certamente sei que não é fácil e é preciso abdicar de algum prazer imediato em certos processos7. Mas também não quero que a sensação de ser péssimo perpasse toda a experiência de escrita.
Mas além disso há outra razão (ligada à primeira, claro). Os critérios para nos avaliar, e acredito que Bright não difere nisso, como ele mesmo comenta em determinado momento, se relacionam com aquilo que amamos na filosofia, ou com aquelas filosofias que de alguma maneira nos tocam e nos motivam a entrar nesse espaço. A sensação de frustração (agora falo de mim) me parece semelhante à não parecer estar a altura suficiente daquela pessoa que amamos, que nos ofereceu tanto e que por alguma razão sentimos que não conseguimos devolver na mesma moeda (ou melhor: não conseguimos devolver qualquer moeda). No meu caso, trata-se sempre de dois tipos de efeito (que se interrelacionam) que a filosofia consegue produzir em mim: ou de me permitir finalmente compreender no pensamento uma experiência que mesmo vivendo não entendia ou dimensionava ou de ajudar a desbloquear alguma forma de pensar limitado que me permite então ver mais do que era capaz de ver antes. No fim das contas, como um bom platônico, a ação filosófica, o trabalho do conceito que aspiro (justamente por ter encontrado tanto) é a capacidade de situar o múltiplo no um, ou de ressituar o um a partir do múltiplo8. É importante dizer, porém, que não se trata de um tipo de gesto excepcional, presente apenas em “figuras geniais”. Nem todos os pensadores hiperclássicos produziram esse efeito em mim, assim como algumas pessoas de zero notoriedade (muitas vezes de maneira insuspeita9) foram capazes de me deixar afetado. Também não digo aqui que todas as vezes o efeito da filosofia vai ser uma transformação absoluta da vida (embora em alguns casos, é bom lembrar, ela não só pode ser, como é). Existem várias escalas em que o thauma pode tomar, assim como ele também pode aparecer em esferas regionais. Mas o que importa é que de alguma forma o tipo de filosofia que aspiro é aquela de cunho transformativo que nos ajuda a ver mais. Difícil isso, difícil acreditar que fui capaz de fazer isso (mesmo em pequeníssima escala) quando olho para o que escrevi ao longo da minha carreira. Certamente se fiz foi por acaso.
Por outro lado, também, é bom lembrar que esse tipo de efeito é justamente aquilo que não está no nosso controle. O caráter dialógico da filosofia faz com que os efeitos que ela gere (e a capacidade de dimensioná-los, de prevê-los) não esteja totalmente no nosso controle. Isso afeta portanto a nossa capacidade de avaliá-los. Pois certamente, como Bright, é possível, e necessário, distinguir um sucesso profissional de uma capacidade de realmente produzir algo de qualidade filosófica. Mas ainda assim, mesmo nesse segundo caso, não acredito que sejamos os melhores juízes.
Isso não significa, porém, que se deve insistir em uma relação com a filosofia que claramente nos faz mal. Cada vez mais venho pensando que parte da dificuldade que me afeta (parte da minha frustração) está mais relacionada aos endereços do que ao próprio ato da escrita filosófica10. Me parece que o problema é menos uma questão de nos sentirmos constrangidos por um ambiente do que encontrar aqueles constrangimentos que nos tornam produtivos — ou seja, que podemos dizer que nos disciplinam de modo a permitir fazer mais.
Felizmente, estudar a história da filosofia, sobretudo com atenção aos seus arranjos institucionais, nos ajuda a perceber como a forma de filosofar atual (que podemos aderir em diversos graus) é apenas uma das formas possíveis para o filosofar. Nos ensina também que não devemos confundir sua hegemonia com qualquer naturalidade, que a filosofia universitária por mais interessante e produtiva e rica que seja não é a única forma de filosofar. Seu domínio é apenas um efeito de certas configurações da sociedade moderna, dos arranjos do capitalismo moderno, do imperativo de que os textos filosóficos sejam amplamente legíveis de modo a facilitar a circulação de financiamentos e empregos11. É compreensível que a hegemonia dessa forma de fazer filosofia dificulte entender que há outras formas, há outros espaços em que o pensamento circule (sobretudo quando o meio universitário tende a também desqualificar o pensamento que não entra ali, sendo rapidamente sendo taxado de simplista, superficial, etc). Dessa forma, se deixarmos como crivo relevante para o nosso filosofar o tipo de forma que a filosofia assume no contexto universitário, nós deixamos a nossa capacidade de ser feliz nesse amor dependente do nosso maior ou menor alinhamento ao tipo de prática que existe nesse espaço. Nem sempre é o caso né? E certamente não é fácil abdicar desse crivo, pois ao abrir mão desse critério, abre-se mão também da expectativa de que se possa viver da filosofia (e de ter que dividir o tempo do amor à filosofia com outros tipos de trabalho)12. Não é fácil imaginar esse caminho, pois implica em parte construí-lo, encontrar os pontos de endereço (e ser capaz de pagar os custos da construção que a universidade já apresenta como aparentemente prontos). Ainda assim, me parece que não há muita alternativa.
Felizmente, como disse, a filosofia é maior do que os seus arranjos atuais. Ela é, como diz meu amigo platonista Germano Nogueira, “a forma de vida que quer viver da forma”13. Mas justamente por isso não podemos cair na tentação de crer que essa forma de vida é separável da vida que a compõe. É sempre importante lembrar que os limites que podemos enxergar para a filosofia, dos tipos de filosofia que são possíveis, dependem das composições que as constituem14.
E o Bright inclusive explicita a régua que toma para seus juízos, o que acho que, somado ao contexto institicional que vie de certa forma constrói o beco que ele se encontra. Não acho que seja possível manter a postura carnapiana que ele adota num contexto filosófico como o que ele vive. Me parece que as demandas das universidades anglófonas (lógica do peer-review, as redes de distribuição de financiamento e emprego) somadas a um ambiente culturalmente analítico (embora não necessariamente com um conteúdo de filosofia analítica) acabem tornando impossível (ou muito difícil) o empreendiemnto carnapiano que o inspira.
Outro ponto levantado por Bright, e que me incomoda profundamente, é uma certa incapacidade de construir algo mais longo. Esse ponto é para mim particularmente importante, um grande critério que tenho para avaliar filosofias é sua capacidade de encadear ideias, de construir algo consistente em que os passos posteriores são sustentados explicitamente por passos anteriores — mesmo que sob formas mais frágeis, “pós-modernas”, de notas, apontamentos que ao menos se relacionam entre si e são capazes de se apoiar no que veio antes de modo que o agregado seja mais que a soma das partes. Não ter fôlego para algo longo (ou para algo que não seja artificialmente longo) é portanto fonte de profunda frustração.
Sobre esse ponto posso apenas me referir ao livro que não escrevi ainda (e que sabe-se lá quando vou escrever) sobre a institucionalidade da filosofia no século XX e seus dramas. Ainda assim, um movimento inicial a esse livro foi publicado na coletânea “Experimentos de Filosofia Pós-colonial”, editado por Claudio Medeiros e Victor Galdino. Uma prévia não-editada desse texto pode ser encontrada aqui.
Como o Bright, também não estou querendo algum afago ou elogio aqui. Apesar da minha lua em leão, é inegável que nessas circunstâncias (ou seja, como resposta a esse texto) um elogio vai soar como um gesto condescendente (ou seja: aprecio o carinho, mas por favor, faça os elogios em outro momento).
Uma mea culpa importante é que só muito recentemente fui capaz de entender o quanto que eu também me fiz de difícil nessa relação intra-comunitária. Não posso deixar de admitir que em alguma medida eu mesmo expressava na minha relutância de realizar certas práticas sociais (de jogar certos jogos) um certo desprezo por um espaço (embora certamente não por certos indivíduos fundamentais pra minha trajetória) que eu queria integrar.
Acho importante dizer aqui que não acho que a solução para esse problema seria simplesmente ter seguido meu desejo. Meu desejo sozinho não é nada, sobretudo se a gente considera o caráter dialógico e comunicativo da filosofia. A gente sempre está fazendo filosofia com alguém, para alguém (seja esse alguém abstrato, concreto, endereçado ou mesmo inexistente). É o endereçamento que ajuda a gente a construir uma certa disicplina que nos permite sair da nossa cabeça.
Nos últimos meses estou sendo perseguido por uma pequena frase do Lacan na primeira ou segunda aula do Seminário XVI “é pela renúncia ao gozo que começamos a saber um pouquinho”
Dividir e reunir, como já vemos Platão falar sobre a dialética no Fedro.
O que não significa “sem querer”, mas que talvez elas não sabem do efeito que tiveram
Inclusive me afastar do twitter tem a ver em parte com a frustração da falta de endereço que impera naquele espaço.
Trabalho para o livro a ser escrito e já mencionado, mas não me parece por acaso o predomínio de um certo modo de fazer filosofia analítico (em que podemos contar e comparar argumentos) e um fazer filosófico historiográfico (não precisamos entender o que é o “bom”, mas simplesmente consultar e avaliar o que é “o bom para Platão”).
É evidente que é ilusório a ideia de que um pesquisador profissional de filosofia (geralmente um professor universitário) vive mais a filosofia (tanto qualitativamente como quantitativamente), mas essa ilusão não deixa de ocupar a mente e as expectativas de boa parte das pessoas que participam dessa comunidade.
Nogueira, Germano. Entre política e ontologia. p. 32
Sobre esse ponto final, que faz uma vaga referência ao conceito de “trinitarianismo organizacional”, recomendo a leitura da seção I.2 do Atlas of Experimental Politics do STP. Não podia deixar de terminar esse texto sem uma menção à composição específica que tem me ajudado nos últimos anos a recuperar meu amor pela filosofia.