Sobre fazer filosofia anacrônica
“We receive of it some one completed form, a specific fully-formed body, and then we keep that alive only by constantly anticipating its end, grinding and lacerating it against all the things around us, everything it does just flashing by and away like an unstoppable galloping horse—is it not sad? All our lives we labor, and nothing is achieved. Worn and exhausted to the point of collapse, never knowing what it all amounts to—how can we not lament this? What good does it do if others say, ‘To us he is not dead’? The body has decayed and the mind went with it. Can this be called anything but an enormous sorrow? Is human life always and everywhere such a daze? Or could it be only me who is dazed, while there are also others who are undazed? Of humans is there anything or anyone undazed?”
Zhuangzi
Gostaria de continuar falando aqui um pouco sobre “fazer filosofia ruim”. Comentei sobre como os critérios institucionais exógenos à prática filosófica (mas internas à sua “reprodução” enquanto atividade social) podem se tornar fardos naquele que aspira se envolver com esse campo. Há porém que se considerar os fatores endógenos, já que a própria dimensão dessa disciplina (milenar, global) e a forma de iniciação (paixão, obsessão, desejo imitativo) acabam por criar seus próprios problemas. Acho que apesar de não me considerar um veterano nessa área, já são 17 anos desde meu primeiro contato com um texto filosófico (e uns 15 desde que comecei a levar isso a sério como um caminho). O que isso significa é que já foram muitas formas de me relacionar com o campo: do deslumbramento iniciático, à arrogância exagerada até uma indiferença envergonhada. Se acredito, porém, que continuei ligado a essa atividade, isso se deve a uma certeza bastante específica: a filosofia (o filosofar, a reflexão sistemática e contínua) torna a (minha) vida melhor.
Desde o início eu tinha de maneira bem clara a ideia de que me engajar nessa atividade (seja conversando, lendo, escrevendo) acabaria de alguma forma me afetando positivamente. Tentar entender esse efeito e circunscrever a região da eficácia do “filosofar”, inclusive, foi a grande questão que me moveu na minha tese de doutorado1. Algo que começou com uma leitura insuspeita do O que é a filosofia antiga? de Pierre Hadot. De maneira bem direta, o que Hadot faz é mostrar a inseparabilidade entre a prática filosófica e a construção de uma boa vida. Bem antes de ser tomado por qualquer ímpeto platônico, a ideia de que a filosofia é um exercício, uma prática, que nos transforma, fazia todo sentido pra mim. E por mais que esse livro seja uma análise de um tipo de prática que em tese estaria superada (com um certo ar de melancolia da parte de Hadot), lembro devorar esse livro, repetindo pra mim mesmo de que aquilo que me interessava no filosofar estava ali naquela capacidade dela nos afetar.
Isso significa que mais do que elaborações conceituais complexas e sofisticadas, ou análises bastante especializadas sobre determinados tópicos, aquilo que me puxava para a filosofia era a sensação (certamente uma espécie de êxtase) de estar conseguindo enxergar/entender mais numa determinada situação. Nesse caso, argumentações, conceitualizações, discussões elaboradas que reconstituem certos conceitos e ideias eram apenas um caminho para conseguir produzir esse movimento de reorientação. Como amante dos diálogos platônicos eu não consigo não deixar de entender que esse caminho é a forma que nos reorientamos. Não é a toa que os processos dialógicos (e sobretudo a ideia de ir encadeando nossas opiniões com cada vez mais firmeza a partir do que se conecta a elas2) acabam sendo para mim um modelo (embora certamente não exaustivo) do que é filosofar. No entanto, devo admitir que aquilo que me pegou no Hadot, e nos filósofos que ele comentava nem sempre necessitava de grandes meandros. Se pegarmos por exemplo as máximas de Epicuro, muitas vezes compostas de uma frase curta, elas bastavam para me afetar. Isso significa que a construção de argumentos era apenas um caminho. Essa mesma sensação aparece pra mim quando leio o Zhuangzi, um texto repleto de anedotas, piadas e imagens que me afetam muito mais do que certas sequência argumentativas, como é o caso do encontro entre a tartaruga e o sapo narrados pelo Príncipe Mou:
“Prince Mou leaned against his armrest and let out a great sigh, then gazed up into the heavens and laughed. “Don’t tell me you’ve never heard the story about the frog in the sunken well? He said to the tortoise of the Eastern Ocean, ‘How happy I am! I jump about on the railings and beams of the well and rest on the ledges left by missing tiles along its walls. When I splash into the water it supports my armpits and holds up my chin, and when I tread in the mud it submerges my feet up to the ankles. The surrounding crabs and tadpoles are certainly no match for me! For to have such mastery over one whole puddle of water like this, possessing all the joy of this sunken well—that is the utmost! Why don’t you come in and have a look sometime?’ But before the tortoise could even get his left foot in, his right knee was stuck in the opening. So he pulled himself back out and told the frog about the ocean: ‘Its vastness exceeds a distance of a thousand miles, its depth is beyond the measure of a thousand fathoms. In Yu’s time the lands were flooded for nine years, but its waters did not rise. In Tang’s day there were seven droughts in eight years, but its shores did not recede. Unpushed and unpulled by either a moment or an eon, unreceded and unadvanced by either little or much—that is the great joy of the Eastern Ocean!’ When the well-frog heard this, his mind scattered in all directions with astonishment, beside himself in his puniness.D Now for the intellect,16 which doesn’t even know the limits of its own affirmations and negations, of right and wrong, to contemplate the words of Zhuangzi—that is like a mosquito trying to carry a mountain on its back, or an inchworm trying to scurry across the Yellow River. It cannot be done.
Zhuangzi, capítulo 17, tradução de Brook Ziporyn
O que isso me faz pensar é que ao menos para mim não consigo medir uma filosofia simplesmente pela sua estrutura argumentativa. Há algo no nível do conteúdo (suas ideias) que podem me afetar mais ou menos. E essas ideias, estrategicamente, podem ser expressas e comunicadas de várias formas, conforme a natureza da ideia a ser transmitida, seu endereço, o contexto em que são recebidas e até as regras disciplinares em determinada situação histórica-regional.3 Isso não é um problema, salvo pelo fato de que (como atesta a melancolia de Hadot) a filosofia, a partir da modernidade, não parece mais ser possível. É como se o que ficasse subtraído da filosofia fosse a pretensão de transformar nossas vidas. Existem razões muito justificadas para isso, que exigiriam um tratamento mais longo e que se conectam com um aumento exponencial da complexidade do mundo4. Gostaria de me ater aqui ao fato de que o que fica excluído do filosofar é a ideia de que o engajamento nela pode nos trazer algum tipo de sabedoria que possa melhorar nossas vidas.
Esse é um processo que ajudaria a explicar uma certa indiferença da filosofia aos seus efeitos. Pois ainda que ela ainda esteja engajada com o problema da verdade (alguns herdeiros de Nietzsche podem contestar), com ser capaz de falar algo de relevante sobre a realidade, essa verdade já não tem mais a necessidade de nos transformar. A estrutura supostamente neutralizadora da acadêmica-universitária parece um local perfeito para realizar esse tipo de atividade, já que seu foco seria a produção, gestão e transmissão de conhecimento. Aqueles que ainda tentam buscar algum tipo de sabedoria, de um conhecimento que possa mudar suas vidas talvez sejam forçados a procurar esse saber em campos diversos (e com graus de legitimidade variáveis conforme o contexto) que vão da auto-ajuda até as artes da previsão (como astrologia, tarot, etc), sem contar as formas escondidas de sabedoria que acabamos absorvendo ao escutar pessoas que entendemos serem mais experientes. Isso cria um problema: supondo que a filosofia não deixou de estar ligada à sabedoria por birra, mas por processos históricos mapeáveis, ficamos um pouco sem lugar — ou melhor, eu fico sem lugar.
Vejo isso sobretudo quando observo como a filosofia (e sublinho aqui: aquelas que considero boas) é feita. Ela é, de diferentes formas, um tipo trabalho que demanda um rigor e uma sofisticação de fôlego, geralmente expressa em uma elaboração complexa e sistemática. As noções de sistema variam, evidentemente, conforme o pensador. Não significam homogeneidade, mas que as ideias de alguma forma se conectam e se encadeiam e que esse encadeamento tem um efeito sobre as partes que compõe esse todo. Também não conseguiria justificar totalmente esse ponto ainda (parte da nota promissória lançada na nota anterior), mas a filosofia teria um outro papel, mas próximo, para tomar uma expressão do amigo JP Caron (sobre um projeto de pesquisa que faço parte, o STP, mas que para mim diz muito sobre a filosofia contemporânea em geral): “we are in the business of fashioning vocabularies”. Fazer sistema é portanto, para tomar outra expressão do amigo, elaborar “frameworks explicativos”.
Isso não esgota o campo (que sobretudo pode acabar se exprimindo em diferentes graus), mas se olho para pensadores como A. Badiou ou R. Jaeggi (para pegar duas tradições distintas), vejo um tipo de elaboração sistemática que não consigo deixar de admirar. Um tipo de atividade produtiva que muitas vezes demanda um tipo de postura que está menos preocupada com os efeitos que a construção, que está preocupado com o verdadeiro (seja como for que compreendam isso). E, mais uma vez, ainda que não seja toda a filosofia assim, a minha impressão é que se trata de uma forma de manter a filosofia viva num tempo em que a sabedoria já não é possível, em que o papel da filosofia precisa ser outro. E como um amante da filosofia, de sua história, como alguém reconhece que ela e suas instituições se transforma ao longo do tempo, reconheço que boa parte do mérito de certos filósofos é conseguir não se deixar dominar por um certo “ar de antiquarismo” banalizante que domina as práticas historiográficas modernas5.
Apesar disso, também fico com um gosto amargo. Pois apesar de admirá-los e saber que hoje em dia a filosofia é feita assim (e com boas razões), me sinto incapaz de repetir esse gesto6. É por isso também que quando leio esses filósofos eu certamente não deixo de extrair lições — e me pergunto quantos deles estariam totalmente confortáveis (ao menos abertamente) com esse efeito de sabedoria. Demorei bastante tempo para aceitar isso (se é que aceitei). Mas certamente sempre tive um grande incômodo por achar que sendo alguém do meu tempo, também deveria aceitá-lo, que deveria escrever e filosofar dessa forma: que deveria ser capaz de ser sistemático, rigoroso, que deveria ser capaz de produzir uma visão que seja all-encompassing (mais uma vez, falo aqui das formas de filosofia que me interessam, que mexem comigo). Cada vez mais vejo que não irei fazer algo assim, o que me deixa triste. Inicialmente era uma tristeza por frustração: há algo ali que não consigo imitar, repetir, aprender a fazer. É algo bastante chato pois não é que eu não goste, não ame ler esse tipo de obra. Eu certamente me sinto profundamente transformado por leituras desse tipo (como foi o caso da recente leitura do Lógicas dos mundos do Badiou. Assim, por muito tempo eu também achei que deveria escrever dessa forma. Certamente não de maneira igual, mas com esse desejo de entender que o centro do filosofar está no encadeamento e na sistematização complexas.
Agora a coisa tem mudado um pouco. Já sofri bastante com isso, de alguma forma tentando ser um tipo de filósofo que acho que nunca fui. Sofrendo com não entender a diferença entre ficar impressionado e afetado por alguém não implica que também queremos (ou precisamos) ser como essas pessoas. Que aqueles livros que gostaria de escrever certamente não são os desse tipo. Consigo aos poucos ver com mais clareza que talvez eu simplesmente não queira fazer um livro que prima pela capacidade sistemática. No meu caso: antes tentar escrever um Zhuangzi ou um Cavell do que um Badiou ou uma Jaeggi. O efeito é que, a partir da ajuda de alguns amigos, tenho conseguido aceitar mais recentemente que o que me liga à filosofia é justamente a sabedoria e as lições que teimo em encontrar nos filósofos que leio (mesmo naqueles que talvez acreditem que isso é impossível). Que talvez queira escrever um livro de filosofia de forma até anacrônica, fingindo que a modernidade nunca existiu, que os processos do mundo ficaram grandes demais para caberem em nossas mentes e que é possível ainda melhorar as nossas vidas com esse tipo de atividade.
Não posso dizer, porém que isso é uma solução plenamente feliz. O efeito disso em mim é um ar melancólico. Por mais que sinta que esteja me encontrando, me vejo num espaço que não deixa de estar fora do meu tempo. Não sei se consigo simplesmente escrever como uma Sei Shōnagon ou um Ralph Waldo Emerson: ensaios que refletem e ziguezagueiam pelos seus pensamentos e nos fazem sentir que conseguimos ganhar um pouco mais de sentido sobre nossas vidas. É por isso que apesar de não ter coragem de dizer que isso é um espaço solitário, visto que não me faltam amizades filosóficas — que inclusive tem me ajudado a conseguir me enxergar nesse processo —, é, por outro lado, bastante difícil ignorar a sensação de que o filosofar que encontrei é vivo mas errado.
Uma tese que depois de quatro anos ainda não fui capaz de fazer as pazes, apesar de entender que há alguns acertos no problema que levantei, ainda que o caráter caótico e excessivo (e também bastante imaturo) deixe isso um pouco difícil de enxergar. Se começo a fazer as pazes com meu mestrado (ao menos com o tipo de problema que me mobilizou ali), não acho que esteja tão distante a reconciliação com a tese.
Sobre a pedagogia platônica acredito que não há exemplo-dramatizado melhor do que o diálogo Mênon. Sua leitura (e releitura) tem sido até hoje pra mim uma fonte de inesgotável de pensamentos sobre como se desenrola a filosofia.
Há uma discussão a ser feita também sobre a verdade dessas ideias, mas deixemos isso para outro momento. Mas deixo aqui adiantado que de forma alguma entendo que seja simplesmente uma questão de convencimento/sedução. Acho que a ideia, quando ideia, possui um caráter verdadeiro que é de certa forma sua fonte de iluminação. Assim, qualquer estratégia expositiva serve menos para iluminar a ideia, do que permitir que sua luz possa ser vista por nós.
Deixo uma nota promissória aqui: vamos ter que assumir que a modernidade implica uma incapacidade do discurso filosófico dar conta do mundo (de tratá-lo de maneira comensurável). O gesto dramático-representativo dessa mudança seria o deslocamento de Marx do interesse pela filosofia para uma atenção ao discurso econômico. Para uma elaboração mais ou menos informal desse processo (e com o mérito de situá-lo também aa partir de Marx) acredito que o livro O Fio da Meada de Paulo Arantes fornece os melhores indicadores. Para uma apresentação mais estruturada seria necessário que eu tivesse gás para conseguir escrever meu livro “Filosofia” de análise das transformações institucionais da filosofia que acabei dando uma forma mais firme em alguns cursos em 2021.
Isso não significa que história da filosofia seja um campo problemático. Pelo contrário, seus méritos são inestimáveis. Falo mais aqui de uma postura derivativa — mas numericamente notável — da história da filosofia que pelo fato da filosofia já ser outra na era moderna-universitária (a partir do final do XIX, início do XX), se conforma e resigna a repetir (e explicar mal) os termos e argumentos de certos filósofos.
Ao menos não no meu trabalho individual.