Sobre a proletarização da docência e a figura do "intelectual"
Nota prévia 1 : comentário a esse tweet:
Nota prévia 2: Esse texto se relaciona profundamente com o texto anterior desse blog/newsltetter.
Nota prévia 3: Também se relaciona com essa pequena thread:
A questão da figura do professor e sua formação cultural é um tópico delicado pois geralmente traz implicitamente questões de classe (quem tem condicão financeira de se formar?) e questões sobre políticas do gosto (quem determina o que é bom?). Ainda assim, acho que trata-se de uma das coisas que mais tem aparecido nos últimos tempos para bem ou para mal. Para parafrasear e citar Marx, trata-se de uma daquelas circunstâncias em que saímos de uma situação ruim (a concentração do “lugar da cultura” em grupos seletos) para o “horror do sobretrabalho civilizado” em que todos se vêem forçados a cumprir expectativas de formação irreais. Sem entrar em todos os aspectos desse problema, explicitar essa parte me parece um caminho para tornar ele mais tratável.
A situação que encontramos (e que acho que o tweet acima parece encarnar, ainda que relativo ao contexto americano e ao ensino básico) é que a proletarização da figura dos docentes, acaba revelando que não é mais possível estabelecer uma equivalência entre "pessoas das belle lettres", intelectuais eruditos, e professores. Acho que o mais comum é interpretar essa situação como uma “perda” ou uma “decadência” (mesmo quando queremos evitar isso, um ar melancólico parece nos fazer retornar involuntariamente para essa posição). Gostaria então de lidar essa nova situação como um momento em que essa equivalência entre intelectual e docente passa a aparecer atualmente para nós como falsa (ou como produto de um determinado momento histórico que não é mais o caso). Devemos evitar tratar essa situação menos como uma “perda” e mais como um dos efeitos inevitáveis da transformação do trabalho docente.
A gente sabe que a profissão docente hoje em dia não deixa tempo para as pessoas construirem sua formação livremente, para seguirem seus interesses, para se surpreenderem, para se atualizarem com coisas fora de seu escopo imediato. Isso vale para as pessoas mais massacradas no ensino básico, mas vale, me parece, igualmente para o ensino superior (onde a especialização e administração ocupam boa parte do tempo livre dessa figura privilegiada). Quando muito é possível que as pessoas reservem um tempo para “leituras de lazer” (mas que respeitando uma divisão cada vez mais difícil de manter entre tempo de trabalho e tempo sem trabalho) que irá produzir um entretenimento mas que não irá contribuir em nada com a inteligentsia (as divisões são esquemáticas e grosseiras para visibilizar o problema).
Diante dessa situação, temos portanto cada vez mais professores que se encaixam na figura de uma pessoa culta, leitora, que sabe o que deve ler, o que pode indicar, que é ótima em dar presentes de aniversário. A princípio a gente poderia crer que isso afeta os alunos, que eles próprios acabam deixando de ter a disponibilidade de serem essas pessoas cultas e eruditas pois não tem ninguém para lhes transmitir esse estilo de vida. Quanto a isso acho que cabe comentar duas coisas.
Primeiro que não é raro que o que identificamos como “inteligência”, “cultura”, “erudição” seja menos um saber dos livros que um saber sobre livros. Isso significa, para não esconder o jogo, ter em mente as referências importantes, saber reproduzir fios narrativos ou cenas impactantes de alguma obra. Ter algumas citações ou paráfrases (suficientemente variada) para soltar em conversas com amigos e colegas de trabalho (jamais com a família, eles sabem que lemos muito menos do que gostaríamos e que isso causa grande sofrimento). Quem descreve isso de maneira bastante clara e honesta é Pierre Bayard, em seu (fantástico, ainda que um pouco repetitivo) “Como falar de livros que não lemos”. O que se percebe é que no fundo ninguém lembra tanto dos livros que leu (e que isso não implica ter sido mais ou menos impactado por uma leitura), mas que ainda assim eles acabam funcionando como uma maneira de socializar ao estabelecer índices, pontos de referência ou afetos que podem ser compartilhados. E que ótimo que livros possam ter essa função, pois dão um espaço para nos reconhecermos entre pessoas queridas.
Mas claro, nem tudo é bom.Além disso, há um outro ponto, que diz respeito aos tipos de livros que costumam ser identificados como “leituras de intelectuais”1. Não é qualquer livro que faz com que alguém seja considerado uma pessoa intelectual. Literatura “comercial” é considerada menor. O mesmo se diz sobre as leituras indiretas que apresentam didaticamente outras ideias, obras ou autores (sobre quem lê compêndios, manuais ou enciclopédias2). Assim, o que acaba sendo privilegiado é um certo corpus (que não raro se confunde com aquilo que é produzido e preservado a partir de certas classes culturalmente dominantes). Dessa forma, os leitores intelectuais tendem a ser não aqueles que leem efetivamente, mas aqueles que sabem navegar entre os marcadores de intelectualidade (e sabemos como isso não é um processo que se funda apenas no “mérito literário”).
Assim, há todo um jogo de aparências que tende a privilegiar quem sempre teve acesso a certos índices de letramento e cultura. Assim, conversas entre familiares em que circulam certas referências, certas imagens e certas ideias permitem que se tenha acesso a um conjunto de referências sem sequer precisar abrir um livro. Por outro lado, a própria presença do livro (e dos livros corretos) ajuda na hora de explorar mais livremente o campo da escrita. Mas como um jogo, é importante ressaltar que isso não significa que essa posição seja totalmente impermeável. Há pessoas que aprendem a jogar esse jogo desde que aceitem romper com a ilusão de que o que se identifica com cultura e inteligência não é mais que uma forma de falar (não significa que não haja leitura, que seja possível se deliciar com bons livros, mas que não é isso que está em jogo aqui).
Essa permeabilidade, porém, é central para perpetuar certas distâncias sociais na mesma medida em que também esconde o que constitui a própria “intelectualidade”. Como se trata de um jogo secreto cujas regras são mantidas à distância (e que jamais precisam ser enunciadas pelos jogadores nativos pois todos já estão cansados de saberem), só poderá participar dele quem entender como se joga. Isso implica conseguir superar essa ilusão e descobrir que nunca se tratou de simplesmente ler livros, trocar ideias, ser uma pessoa razoavelmente culta (muitas vezes inclusive isso atrapalha, já que você pode cometer o erro de corrigir as pessoas, de expôr as lacunas dos colegas ou até parecer “forçado” demais). Nem sempre é fácil apagar essa ilusão do que é cultura, sobretudo quando se começa a gostar de fato dos objetos culturais (seja lá qual for).
Acho então que é natural em certo sentido que a figura do "intelectual inteligente" entre em crise. A gente vê isso, não é um demérito, é apenas um efeito da atividade docente estar sendo ocupada por outras questões, outros problemas. Acho que o grande risco que corremos é ver isso como decadência. Enxergar como decadência é apenas olhar a história de cima para baixo. Dizer que os professores não são mais cultos, que nenhum professor lê mais, é dizer que nenhum professor tem tempo livre para se formar, que nenhum tem já em casa um enorme arsenal de referências que permitem ele se situar sem grande esforço na imagem do intelectual. Na medida em que essas condições deixam de ser o espaço em que são produzidas as pessoas que acabam ocupando profissionalmente o lugar do intelectual (mas sem portar seu dinheiro ou a familiaridade com os símbolos relevantes), o intelectual pode acabar também se tornando outra coisa. Se lemos essa história como decadência, corremos o risco de querer reproduzir as próprias condições que permitiram a formação daquele tipo de intelectual.
Isso não significa que tudo seja perfeito. Ainda que o jogo da cultura, da ex-alta cultura, possa estar mudando, isso nos traz novos problemas. Que professores não leiam (ou que leiam coisas que não são identificadas como cultura) não parece atrapalhar os processos de formação (do ensino básico ao superior). Ainda que haja muitos problemas nesses espaços, suspeito que “formação não-intelectualizada” (nos termos que tratamos) não seja um desses problemas.
A gente vê isso inclusive muito bem no meio universitário. Quando se olha de perto, poucos são as figuras que ainda conseguem realizar bem a pose de “inteligentsia”. A maioria parece lidar com seu campo de modo mais fabril. Ou seja, se especializando, decompondo seu campo em partes ainda menores para prestar uma maior atenção aos detalhes. Isso (junto com o trabalho administrativo) vai tornando o professor universitário em uma espécie de operário do saber (e que produz, nos mais variados sentidos, bibliografia). Essa transformação do humanista para o especialista não produziu nenhuma decadência ou piora na situação, não diminuiu a qualidade do trabalho acadêmico (eu diria que em muitos sentidos melhorou) ou das formações. É certo dizer que talvez não haja a mesma capacidade de circular em múltiplos campos, mas é importante lembrar que isso nunca foi uma circulação real e sim uma aparência de circulação que esconde muito bem suas deficiências (sprezzatura, para retomar Sérgio Ferro). Se é possível dizer que a “formação acadêmica” piorou, isso parece ser menos o caso de uma transformação no professor e mais na ausência de tempo, na falta de professores para lidar com a democratização das universidades e assim por diante.
Agora, se isso não é um problema é porque a formação humanística não é o que está em jogo nesses espaços. Nos colégios podemos dizer que se trata de formar alguém que vai ter condições mínimas de se tornar exército de reserva: o que envolve um conjunto de habilidades mínimas, uma formação das disposições [docilização] dos corpos e um gerenciamento de expectativas que diminuam qualquer chance de revolta. Na universidade (ou melhor, no campo de pesquisa), vemos que também não há interesse em promover esse tipo de formação. A maneira como a carreira de pesquisa se estrutura parece estar perfeitamente alinhada aos desenvolvimentos da ciência contemporânea (e à sua fragmentação). Resta perguntar se isso é algo desejado, mas isso parece diferente de dizer que a falta de “intelectualidade” dos docentes está afetando negativamente o ensino (ao menos se considerarmos os objetivos atuais do ensino).
Eu tenho insistido nesse ponto (ou tenho voltado obsessivamente, uma das minhas 7 obsessões atuais, como uma amiga diz que tenho), pois acredito que qualquer forma de sair desse impasse não passa por um simples retorno ou uma recuperação de uma figura do intelectual livre, disponível. Este é o produto histórico de uma série de desigualdades que — a menos que sejamos nietzchianos aristocratas — não vamos nem desejar almejar. Deus sabe que não sei qual caminho deve-se tomar, por isso me sobra terminar com uma proposta manjada que só atesta minha incapacidade de pensar isso: tenho a impressão de que o reconhecimento desse impasse (e do que nos leva a ele, suas condições, as situações que lamentamos melancolicamente) pode ao menos nos ajudar a deixar de lado certas expectativas e acordar um pouco e perceber que algumas soluções talvez já estejam sendo experimentadas.
Importante deixar claro aqui que um grande buraco da minha formação é Bourdieu, então qualquer conversa de “capital cultural” (ou coisa que se assemelhe) é fruto de leituras de orelhas ou de contato na base do ouvir-dizer de gente que leu e estudou.
Uma exceção é Borges, que produziu do “saber menor” pois “indireto”, “sumário” e “redutor” (ao menos naquele momento e no nosso também) uma obra que consegue respeitar e reproduzir (de maneira irônica eu diria) uma série de elementos que a permitem ser identificada como “literatura maior”.