Alguns comentários sobre o futuro do "futuro do pensamento"
dedo no cu e gritaria na “A última ceia” do pintor proto-proletário Tintoretto.
nota preliminar 1: o que foi escrito aqui é uma reflexão da thread abaixo do @nescio13 a partir de uma leitura em andamento de “Artes plásticas e trabalho livre” do Sérgio Ferro.
nota preliminar 2: uso aqui “pensamento”, “filosofia” e “escrita” de maneira intercambiável. Essa conexão não foi feita (e nem poderia) totalmente nesse texto, mas foi apenas telegrafada de maneira breve.
Uma coisa que tenho pensado e que acho que dificulta a futurologia do futuro da intelectualidade (ou as expectativas de alguns acadêmicos que exprimem um narcisismo natural) é que aquilo que vai ser lembrado talvez reflita as condições atuais e futuras de produção de conhecimento. De maneira muito resumida (embora seja algo que em algum momento eu gostaria de desenvolver), acho que a era da figura do gênio-imemorial é também um (longo) crepúsculo de figuras que são compreendidas a partir de uma certa noção de indivíduo livre historicamente enraizada. Inclusive diria que o livro "Artes Plásticas e Trabalho Livre" do Sérgio Ferro tornou muito visível pra mim como uma certa imagem de gênio (nas artes plásticas) aparece no renascimento como recusa das novas formas de reprodução social (surgimento de manufaturas e do capitalismo).
É certo que não é possível fazer a transposição do gênio pintor para o "intelectual" dado a importância do trabalho manual para o primeiro. Mas se conseguirmos delimitar a manualidade própria de um intelectual (um grande "se"), acredito que a figura do gênio ganhe algum contorno. Para adiantar algumas coisas que não tenho como justificar, diria que esse intelectual teria sua manualidade associada à escrita (envolvendo aqui: editoração, tradução, catalogação, registro de impressões, organização de observações etc) como produtora de inteligibilidade. Esse trabalho ligado a escrita tem várias encarnações na história: o burocrata, o contador, o catalogador, o historiador (cronista), o monge, o teólogo, o filósofo (mesmo boa parte do que se identifica como filósofo na figura do comentador), o protojornalista, etc. Nesse sentido, o intelectual (ao menos a aspiração a essa posição) talvez apareça como um certo desejo de um trabalho livre (no caso a livre-pesquisa que também é uma forma de associação livre). Assim, seria alguém que escreve como e o que quer (Montaigne e Descartes, por ex).
Ainda que haja uma longa história a se escrever sobre isso (que talvez comece com as figuras que mencionei), parece que aspirar a posição do intelectual/filósofo é desejar ser destacado (poupado) do regime habitual de trabalho que vai se desenvolvendo no início da modernidade. De certa forma, a gente pode dizer que esse desejo foi sedimentado (após alguns séculos lentos e de maneira muito frágil e ainda pouco acessível) na fundação e disseminação (sobretudo no norte global) da forma moderna das "universidades de pesquisa". Esse me parece o espaço, lugar, em que é se possível aspirar em certo sentido realizar o desejo de se escrever/pesquisar sobre o que se quiser. Ainda mais que há ali o princípio de garantir uma estabilidade financeira e uma segurança de emprego (o suficiente para tranquilidade).
Claro que isso não deixa de ser um desejo que se realiza, como costuma ser nos contos de fada, junto com a pior das interpretações. Sabemos que essa liberdade não é tudo e que ela acaba também condenando aquele ligado a universidade a desejar nunca ter desejado essa liberdade. A centralidade da manutenção do aparato universitário, seja a gestão ou a justificação de que se deve ser financiado, tornam aquilo que era um elemento auxiliar à liberdade de escrever (pela organização de uma instituição que promova a liberdade) em um fim mesmo dessa atividade. Temos essas situações doidas em que boa parte dos acadêmicos (foco na filosofia) estão condenados a escreverem tipos de texto que justificam a máquina continuar rodando e que servem como "justificativas" para que eles permaneçam livres para seguirem seus desejos (mas sem tempo?). Mas aí a gente já pode observar uma outra torção. Pois sabemos que apesar disso, há gente que continua gozando dessa liberdade. Há gente que efetivamente consegue continuar produzindo e realizando seu desejo (vemos seus livros, suas falas, suas ideias!). Como isso funciona?
Acho que nessas horas encontramos uma reduplicação interiorizada da separação entre trabalhador subordinado e livre que Sérgio Ferro havia identificado na cisão entre pintor e artesão. Além da separação entre acadêmicos e outros escritores, haveria uma entre burocratas da escrita e "pensadores". É como se os pensadores acabassem também (a fim de garantir uma certa liberdade) precisando se destacar da massa de burocratas escreventes no interior da universidade. Nesse caso, não é também como se eles fossem "livres" realmente (já que eles próprios se destacam na medida em que bolam uma série de procedimentos que permite que eles desviem — com bastante trabalho — da norma). Também não é como se eles acabassem escrevendo sem nenhum mestre. Daria pra dizer que é nesse ponto que temos figuras que (como os pintores do renascimento na história de Sérgio Ferro) acabam também alimentando os aparelhos ideológicos do estado. O “livre pensador” na maior parte das vezes acaba sendo o braço da comunicação de algum conjunto de valores, preceitos ou ideias.
É por isso que não consigo deixar de olhar com uma certa graça esses desejos de ser lembrado. Me parece uma forma de buscar transcender a condição de trabalhador submetido ao modo de vida capitalista (e um tipo de trabalhador que tem sido cada vez mais precarizado de formas cada vez mais cruéis) rumo a uma liberdade sem que essa liberdade efetivamente se instaure (e muito menos se generalize — algo que em figuras esquerdosas acaba sendo um pouco constrangedora).
Há um mérito aqui claro. Esse desejo de destaque, como bem articula o Ferro, é também algo que visibiliza a própria ideia de um trabalho livre, que evidencia as mudanças nas transformações na maneira de viver e se reproduzir. Não se trata, portanto, de um gesto vazio e puramente composto de vaidade. O que há é realmente a tentativa de instaurar por meio de uma reorganização das condições de um tipo de produção, um tipo de vida que não está totalmente submetida a esse modo de vida acachapante.
Mas é também pelo fato de isso não ser algo de ontem (esse desejo de ser lembrado) que eu não consigo deixar de enxergar com uma certa graça esse tipo de desejo. A era dos grandes gênios é crepuscular pois essa forma de superar as condições atuais de produção de conhecimento intelectual já deu o que tinha que dar. Fico pensando que parte da dificuldade que temos de imaginar quem vai ser lembrado no futuro não está também colada na nossa dificuldade de imaginar as novas formas de organização desse tipo de trabalho (ou a dificuldade de tornar experiências que existem atualmente em realidades visíveis e que circulem com mais facilidade).
O aspecto otimista da minha leitura talvez esteja em acreditar que o pensamento não vai parar de se articular, mas que de alguma forma aquilo que vai ser lembrado (ou a forma do lembrável) vai depender também das novas formas de trabalho que construirmos que consigam sustentar essa liberdade de maneira coletiva (esse desejo de realizar uma pesquisa finalmente livre — livre para poder se desenvolver à toa?). Nesse caso então a dificuldade de imaginar que alguém vai ser tomado como importante fora figuras epigonais (pessoas que tiveram alunos que influenciaram outros alunos) é um resultado de estarmos diante de um impasse na própria história da atividade escrita. Assim, o caminho para um futuro (e não uma simples repetição que alonga de maneira enfadonha o crepúsculo da era dos gênios) não se apresentaria mais como uma saída individual (e desesperada) pelas poucas frestas que se abrem (e permitem alguém ser “eternizado” — ainda que em algumas páginas da Stanford Encyclopedia of Philosophy que poucas pessoas lerão), mas realmente como um esforço em que a própria capacidade de escrever (incluindo aí todas os aspectos dessa atividade que apontei acima e muitos outros que talvez não tenha me lembrado ou que ainda não existam efetivamente) seja rearticulada a partir da necessidade de conseguir tocar a sua vida de maneira mais livre.
Mas aí talvez a gente não esteja mais falando apenas de escrita (ou de filosofia), certo?