O "trabalho livre" fora do lugar (parte 1)
notas sobre "Artes plásticas e trabalho livre" de Sérgio Ferro
O texto a seguir era para conter duas etapas: um resumo da obra de Sérgio Ferro e uma análise das suas principais consequências pros problemas que me interessam. A segunda parte do texto pode ser encontrada aqui.
Essas notas são — não custa dizer — provisórias, provavelmente repletas de imprecisões técnicas (devido à pressa com que foram feitas e às minhas inseguranças eternas no jargão marxológico que no próprio Ferro é também bastante incerto) que, porém, não parecem apagar o argumento geral. Também são uma aproximação inicial que provavelmente vai ser corrigida conforme retorno para esses trabalhos com mais calma.
Estou obcecado com uma obra: Artes plásticas e trabalho livre de Sérgio Ferro. E não é qualquer tipo de obsessão. Eu sou uma pessoa bastante obsessiva, isso é bem conhecido. Eu me apaixono rapidamente por inúmeras obras e autores. Não sou uma pessoa difícil, basta estar no meu escopo de atenção. Ainda assim, esse livro bateu diferente. A sensação que tenho é que ele conseguiu botar em palavras boa parte das minhas preocupações dos últimos 10 anos — ainda que essas preocupações só agora estejam começando a ganhar forma. Que isso tenha acontecido em um livro sobre “história da arte” (um campo que definitivamente não é o meu) é talvez apenas a confirmação de que as ideias que ele mobiliza são suficientemente próximas daquelas que tenho perseguido nos últimos anos (um amigo gosta de dizer — contra a minha autoimagem — que eu sou uma pessoa bastante monotemática: talvez ele tenha razão). Tenho enchido o saco de muita gente com meus suspiros, exclamações e citações aleatórias enviadas no zap ou no twitter, então queria tentar organizar as ideias e tentar explicar (até para mim mesmo) o que é que mexeu tanto comigo nessa leitura.
Em primeiro lugar, um resumo que deixará muitos elementos de fora. Ferro tenta nesse livro demonstrar (esse termo é importante) a relação entre as transformações no mundo social do trabalho a partir do início do capitalismo (que coincidiria não coincidentemente com o período do renascimento) e o surgimento do artista plástico enquanto um trabalhador (relativamente) livre (do mercado). Essa relação não é, porém, apenas indicada. O grande mérito do Ferro é analisar as obras e mostrar de que maneira o esforço de se separar do trabalho artesanal das corporações de ofícios (altamente regrado e cada vez mais submetido ao ritmo exploratório do mercado) aparece no próprio desenvolvimento técnico dos vários artistas que se destacam no mundo das artes plásticas. Isso implica ler os desenvolvimentos artísticos dessa classe de pintores como uma forma de tentar construir um espaço de um trabalho que não seria submetido ao mercado, ou seja, que seria um espaço de trabalho livre.
As artes plásticas que se desenvolvem nesse momento seriam, portanto, um esforço que procura ativamente ir contra o caráter servil da atividade artesanal, procurando delimitar (de dentro pra fora) um novo campo que se afirmaria ao se insubordinar às exigências do mercado. Mas como se libertar dessa posição subordinada a partir de uma atividade que não tem como abandonar seu ponto de partida manual1? Para realizar isso, seria preciso conseguir se libertar da “lei do valor” que passava a se impor a partir daquele momento histórico. Enquanto as obras dos artesãos seriam avaliadas a partir dos custos materiais, da reprodução da força de trabalho, do tempo de produção, o artista produziria uma obra que não pode ser mensurada como outra mercadoria qualquer (trata-se, como afirma Ferro, de uma mercadoria que possui preços sem valor). Há aqui um momento de transição (que sabemos que aconteceu, pois vemos hoje em dia o status social que as artes plásticas atingiram) que se torna possível devido à assenção de uma nova elite social que busca formas de demarcar sua força.2
Na prática, o movimento de afastação passaria por uma negação determinada dos sinais de trabalho manual que indicariam uma posição social inferior. Ainda que não seja o foco do livro, temos algumas descrições da atividade produtiva artesanal. O artesão procura construir uma obra que exige determinado gesto produtivo para ser realizada. Nesse processo, porém, a atividade produtiva paga o produtor no interior do processo produtivo por meio de processos altamente regrados, codificados e convencionados no interior das oficinas. Não deixa de ser uma forma de organização que parece antecipar a futura alienação do trabalhador que decorre da separação entre o momento de planejamento e o processo produtivo. O que vemos no produto final nas coorporações é uma obra que carrega consigo marcas de produção sem que elas apontem para algum produtor que paira acima dessa atividade como artífice. É possível dizer que nessa operação a presença do sujeito produtor é apagada por meio da sua disciplinarização e normalização, enquanto esse processo gera como resto um sinal de que “algo foi produzido”. Qualquer outro tipo de marca, que indique a presença de um sujeito produtor que trabalha na obra, é tido como erro, deformação que tira a atenção do produto final (e algo que em última instância corrompe a pretensão de reprodutibilidade essencial para a sua inserção no mercado). Sérgio Ferro destaca três estratégias que foram adotadas progressivamente pelos artistas em seu processo de separação do trabalho arteseanal (e que indinicam diferentes momentos lógicos dessa negação): 1) o virtuosismo, 2) o “liso” e 3) o non finito e a esprezzatura.
O primeiro movimento é uma separação por excesso por meio da virtuose. O desenvolvimento de uma habilidade técnica mais competente passa a ser transposto para as obras de modo a apontar a presença de uma figura por trás desses vestígios de produção. As análises sobre Dürer no primeiro capítulo da obra retratam a maneira como o virtuosismo tenta negar o trabalho artesanal por meio de uma simples superioridade “quantitativa”. No lugar de apenas figurar uma imagem, busca-se também transmitir a própria habilidade do produtor. Nesse movimento há uma vaidade que se permite inserir no processo produtivo, visto que ela não serve simplesmente à obra, mas ao retorno de uma figura que seria apagada no processo produtivo habitual. Nega-se aqui o apagamento do produtor no meio do processo produtivo.
O liso, por sua vez, vai em direção contrária. O artista aparece não por meio de um excesso (embora essa esteja presente), mas por meio de uma produção do apagamento do processo produtivo. A análise da obra de Leonardo demonstraria um esforço impossível de apagar todos os vestígios do processo produtivo. Ainda que essa tarefa jamais fosse possível realizar completamente, esse movimento, como o anterior, apresentaria uma negação determinada do processo produtivo: neste caso, aquilo que é negado são os vestígios inerentes ao processo produtivo.
Por fim, Ferro destaca o non finito/esprezzatura. Esse procedimento buscaria abrir mão do caráter terminado da obra a fim de sustentar a posição diferenciada do artista em relação ao artesão. Seria impensável para um artesão escultor deixar uma obra sua inacabada, já que se trata de uma atividade — que aos moldes clássicos — se dirige para um fim. A fabricação da obra, sua composição e configuração material deve ser terminada para que a obra material realize nela própria a figuração desejada. Os artistas que adotam o non finito, por sua vez, ao manter (ou inserir) em suas obras marcas de incompletude, como nas esculturas de Michelangelo (como São Mateus, ou a série Escravos), acabam deslocando para outro ponto o objetivo da obra: no lugar de sua realização, um aceno para um conceito ou uma ideia que não pode se encarnar totalmete na obra. O que se nega nessa terceira estratégia é a finalidade do processo produtivo como aquilo que deve gerar um produto realizado.
Vê-se que cada uma dessas três estratégias não apenas negam o trabalho manual, como, cada uma à sua maneira, buscam mostrar experimentalmente que o centro dessa atividade artística é da ordem do conceitual/espiritual. Mas há um efeito interessante nesse processo que cabe ser realçado. Se retomarmos o esquema aristotélico das quatro causas, é como se cada uma das negações determinadas acabassem empurrando a atividade produtiva para seu lado ideal. A virtuose nega a causa eficiente (um produtor anônimo é substituído por um autor que se impõe); o liso nega a causa material (os vestígios da produção são apagados em nome de outros tipos de marca); o non finito nega a causa final (um produto final é recusado em nome de uma obra incompleta). Essa tripla negação preserva apenas a causa formal, isto é, a ideia como centro da operação artística.
Esse caminho, porém, não é simples. Ainda que a história do renascimento seja um movimento em direção à ideia (ao concetto), o que é demonstrado página após página é como essa negação da realidade manual do trabalho elaborada pelos artistas plásticos para se libertarem do fardo do trabalho artesanal acaba sempre demandando dos artistas um conhecimento ainda mais profundo dos limites da manualidade. É como se eles precisassem experimentar de maneira renovada o conhecimento do mundo material para conseguirem inventar na materialidade o mundo conceitual que aspiram.3 As contradições que Ferro encontra em suas obras são, portanto, os sinais dessa experimentação inconclusa.
Essa realização nunca se completa pois, para Ferro, a atividade artística é apenas uma amostra muito restrita do trabalho livre. Apesar de ele se destacar (como uma negação) do trabalho manual subordinado, ele não deixa de se encontrar subordinado (de um ponto infinitamente mais confortável) a outras tantas demandas. No fim das contas, é como se para Sérgio Ferro as próprias contradições que decorrem da posição do artista (e os malabarismos que ele precisa fazer na técnica para evitar ser associado ao trablaho manual) acabassem mapeando em negativo o espaço para um tipo de trabalho verdadeiramente livre que ainda não foi conquistado em nossa sociedade. Trabalho livre sim, mas fora do lugar.
Diferente da “poesia”, que já ocuparia um ponto de vista “desmaterializado. Mas talvez isso seja apenas o obscurecimento (como podemos ver a partir do próprio Sérgio Ferro) do processo que culminou na espiritualização da poesia. É este projeto que em alguma medida gostaria de desenvolver eventualmente e que esbocei aqui e aqui. Além disso, é importante marcar que a inferiorização da atividade manual em relação à outras atividades já é socialmente estabelecida naquele contexto, de modo que aqueles que se ocupam dessa atividade assinalam de partida uma posição social inferior. Por outro lado, pode-se argumentar que essa tese não é verdadeiramente uma divisão entre trabalho manual e intelectual mas sim uma divisão entre aqueles que são constrangidos a trabalhar (independente da razão) e aqueles que tem o luxo (ou o poder) de apenas se ocuparem com o que desejam (uma vida sem resistências, que pode portanto se contentar com o plano liso das ideias). Neste caso, portanto, a identificação de uma divisão entre trabalho manual e espiritual é apenas uma codificação social que separa aqueles que trabalham dos que não trabalham (uma divisão que varia conforme as próprias formas de organização de uma sociedade).
Esse processo que carece de elaboração é indicado por Ferro: “No começo, as cortes, compelidas à ostentação para consolidar sua legitimidade suspeita, conferem às obras de arte a condição de tesouro, que é, por natureza, raridade onerosa. A raridade é provocada pela promoção de alguns poucos, tidos, com ou sem razão, como os mais ‘virtuosos’. Seleção para a qual colabora a doxa do campo artístico e cultural, de Boccaccio a Vasari. Os mais virtuosos, rarificados, são recompensados pela ‘graça’ do príncipe, com grande generosidade, vimos. Para justificar sua situação ‘exótica’, os artistas, postos assim fora da lei do valor, têm que evitar a todo custo o que possa ser associado ao cálculo mercantil, em particular ao preço do trabalho social. Ou seja, distanciavam-se do preço do trabalho subordinado, que aliás, diminuía continuamente com a oferta massiva de força de trabalho. Para isso, tinham que demonstrar habilidade superior que justificasse sua especificidade. A posteriori, tal habilidade será tão mais exagerada pela elite quanto maior for seu preço, numa tentativa pueril de fazer voltar a lei do valor ao lugar do qual foi expulsa. Como isso, evidentemente, não funciona, a habilidade é levada a saltar a cerca e ser transubstanciada em ‘genialidade’, o mito da hiperqualificação inata que faria justiça (retroativa) aos preços exorbitantes. O inato é o recurso ideal pois não tem explicação. Muitas biografias de Vasari começam com relatos dos dons miraculosos dos artistas renomados. O gênio é a figura retórica criada para contornar o escândalo da interrupção da lei do valor, numa sociedade em que esta deveria valer sem exceções. O gênio é o álibe da ostentação, cuja matéria é sempre o ouro em excesso.” (pp. 66-67)
Essa aspiração parece ser dramatizada sobretudo nos capítulos sobre Caravaggio e Velázquez no livro. Enquanto o primeiro parece ser uma realização feliz desses impasses (aceitando sua posição, com uma espécie de humildade epistêmica que contrasta com seu humor pessoal), o segundo apresentaria as consequências trágicas desse impasse.