Esse pequeno texto eu acabei escrevendo para outros fins, para tentar justificar para mim mesmo a forma abrupta com que eu iria começar um texto. Para muitos talvez seja só mais um giro no parafuso da neurose, mas de alguma forma senti que ele acaba encapsulando bem algumas das minhas angústias e dificuldades na hora de escrever filosofia.
É lugar comum dizer que a filosofia é uma atividade impossível de definir. Trata-se de uma atividade tão plástica em sua história, com fronteiras tão móveis — que se deslocam conforme o próprio deslocamento dos indivíduos filosofantes no espaço e no tempo — que os esforços de circunscrevê-la acabam sempre por morrer na praia. Diante desse desafio, é comum, portanto, que o filósofo acaba se refugiando em alguma espécie de gesto temporariamente provisório1. Nesse caso, entre os procedimentos prediletos adotados, pode-se destacar a busca por um começo. Incapaz de aspirar no começo do percurso qualquer tipo de universalidade, a capacidade discursiva de descrever um problema, de apontar algum impasse ou de enunciar um limite acabam servindo de porta de entrada para a elaboração conceitual. Não se trata, porém, de uma simples asserção fatual ou empírica. O que está em jogo não é simplesmente se ver diante de algo insolúvel e comentar esse fato. Se me deparo com a impossibilidade de voar, posso apelar para a física como explicação para esse fato. Nessa estratégia mencionada a filosofia parece ser sempre um último recurso, quando não se é mais possível, de forma alguma, entender ou conseguir dar conta de uma determinada situação. Como se apesar dos esforços, algum tipo de resíduo permanecesse. É como se o pensamento viesse à (tentativa de) socorro quando já não há mais meios de encarar algo que nos encuca. De maneira paradoxal e direta: a filosofia dá às caras quando uma situação se mostra como impensável.
Assim, nesse processo de determinação de um problema, é como se o filósofo desenhasse em torno de si os contornos do conjunto de espectadores potencialmente endereçados a partir daquilo que ele escolheu naquele momento como relevante. Isso não significa, porém, que esse “começo” se satisfaz com sua provisoriedade. Deixando de lado por algum momento a pretensão costumeira dos filósofos, parece ser difícil descolar do filosofar aquela pretensão nietzschiana de produzir algo que é ao mesmo tempo “para todos e para ninguém”. Para ninguém pois o mais comum é que aquele que recebe aquela obra2 pode muito bem estar fora desse contorno inicial. Não por qualquer arbitrariedade (como se fosse questão de gostar ou não de tomar café), mas pelo simples fato de que o esforço de delimitar um conjunto inicial de questões passa também pelo testemunho3 discursivo de sua relevância. Ou seja, a possibilidade de tratar certos problemas seria contemporânea dessa determinação discursiva operada pelo filósofo— que no caso do texto filosófico pode se dar das mais diversas formas: argumentativamente, narrativamente, historicamente etc —, mas passa a existir a partir do momento em que a indicação do problema é construída4. Para todos, por outro lado, pois aspira-se que essa determinação do problema surja como possível porta de entrada para qualquer um (daí seu desejo universalizante).
Uma segunda questão aparece nesse momento: como fazer com que aqueles que estejam “fora” de uma filosofia possam entrar nela? Se o ato de descrever um problema inicial é aquele que também traça o espaço sua existência discursiva (visto que trata-se de um “para além” do habitualmente pensável), não se pode esperar de antemão que a filosofia tenha uma forma (isto é, que ela possa ser entendida como um gênero, como um conjunto de regras, procedimentos, expectativas que a tornam reconhecíveis para aqueles que dominam um código). Para nos restringir ao âmbito textual, não é raro que os textos filosóficos sejam totalmente irreconhecíveis entre si, como se aprender a ler um texto de um filosófico não garantisse a capacidade de navegar por outro texto. Se por um lado esse caráter experimental ajuda a explicar a heterogeneidade do que se chama de filosofia, por outro isso acaba impondo um desafio para cada obra. De alguma maneira ou de outra (seja diretamente, seja por meio de camadas de discípulos ou intérpretes), me parece que cada obra precisa trazer consigo também um caminho que permita caminhar do espaço não-filosófico5 ao filosófico. Isto é, de um espaço em que o pensamento é codificado de alguma maneira (seja por práticas, por hábitos, por formas de pensar, etc) para um em que é necessário construir passo por passo6 — e que por conta dessa ausência de sobredeterminação, pode-se dar de muitas formas7. Nesse caso, portanto, todo filósofo precisa apresentar uma escada (mesmo que ao final da subida ela seja dispensada). O caso paradigmático, para mim, desse esforço é o método platônico. Apesar da grande variedade de diálogos, é possível dizer que a esmagadora maioria deles possui um enquadramento que apresenta narrativamente a discussão em questão para que, somente em seguida, se entre nas minúcias da discussão conceitual. Nesse caso, Platão aposta que a vida prosaica cotidiana é em alguma medida o espaço em que os problemas filosóficos podem aparecer. A personagem de Sócrates tem, portanto, como uma de suas funções, servir como mediador entre esse espaço prosaico do discurso opinativo e o campo experimental da filosofia. Ao introduzir alguns questionamentos e apontar paradoxos em certas “soluções” da dóxa, Sócrates demonstraria a necessidade de ir além das formas estabelecidas de reflexão. Mas, retornando para o primeiro ponto, essa escada mediadora só tem sentido diante da determinação de um problema. Assim, quando a opinião não consegue mais se enganar sobre sua capacidade de pensar determinadas situações — graças aos esforços socráticos —, pode-se enfim começar a tratar o caráter até então impensável de determinadas questões.
Isso significa que em alguma medida, se aqui aspira-se a um esforço semelhante, também devemos introduzir um problema, ser capaz de testemunhar pela relevância de algum problema. Isso cria uma situação um pouco ridícula. Pois se por um lado o “impensável” é geralmente associado a um espaço original, de novidade, na maior parte das vezes, quando a filosofia busca “pensar o impensável”, o que vemos, na superfície ao menos, são questões banais, triviais, tão antigas quanto o tempo. O “ser”, “o bem”, “a liberdade”, para ficar em alguns temas que foram reificados a ponto de se tornarem questões para serem respondidas em concursos públicos. Nesses casos, a função da escada mediadora é de alguma maneira ser capaz de restituir um pouco o caráter impensável daquela questão. Isso, porém, demanda um certo esforço que muitas vezes acaba perfazendo toda a obra em questão.
Há uma escolha difícil a ser feito nesse ponto: ou confia-se no tratamento do problema, que seu desenvolvimento acabará demarcando a singularidade daquilo que é ali tratado, ou busca-se, de maneira ansiosa e afobada explicar aquilo que será apresentado ao longo do texto, como se fosse possível comprimir para o leitor em enunciados sintéticos a relevância de algo que ele ainda não é capaz de reconhecer (visto que falta-lhe todo o resto). Nesse ponto, nos alinhamos com Hegel: “Numa obra filosófica, em razão de sua natureza, parece não só supérfluo, mas até inadequado e contraproducente, um prefácio”8. Não cabe aqui esperar que os movimentos iniciais desse percurso sejam capaz de transmitir o peso das questões que quero apresentar e trabalhar. Resta apenas confiar que o percurso seja capaz de tornar essa reflexão aquilo que ela é. Ou talvez todo esse início tenha como única finalidade justificar o ponto de partida banal, corriqueiro e até um pouco cafona que se verá a seguir.
Esse impendente fracasso não impedirá que aqui se faça inúmeras asserções ou definições do ato filosófico nesse livro.
Uma obra que tende a ser de ordem “escrita”, mas como, por exemplo, a vida socrática o demonstra, não necessita sê-la.
Cf. Lapoujade, Les existences moindres. Isso não significa, evidentemente, que o problema não existe antes de sua elaboração discursiva. Nossa aposta aqui é que torná-lo tratável tem um efeito positivo na lida com ele.
Alguns filósofos, como Deleuze, chegarão ao ponto de dizer que o todo do filosofar é a determinação precisa de um problema.
Que não podemos reduzir a um simples “senso comum”, visto que existem inúmeras formas mais ou menos codificadas de gerar pensamentos (ou, num termo mais tradicional, opiniões). Nesse caso, portanto, gostaria de evitar aqui, inicialmente, uma visão negativa da opinião, como se ela fosse necessariamente estúpida. O que me parece é que a opinião é simplesmente o pensamento que é sobredeterminado por uma rede de sentidos, tradições ou práticas prévias que, por sua vez, permitem uma certa confiabilidade na comunicação.
O que não impede a existência de tradições e escolas de pensamento, que podem servir de apoio nesses percursos (da mesma forma que sensos comuns e outras formas de pensar também o podem).
Ausência de sobredeterminação, porém, não implica ausência de qualquer tipo de determinação exterior, visto que o próprio material que se utiliza para construir esse percurso não vai deixar de afetar e deixar marcas naquilo que se constrói.
Hegel, G. W. F.., Fenomenologia do Espírito, Prefácio.
Adorei o texto. Abriu para mim uma possível resposta da questão do porquê pode existir um momento certo para ver/ler/ouvir algo. Mas além disso, também me deu uma nova perspectiva de como me encontrar com textos filosóficos.