Esse texto também é um convite para um curso que vou oferecer sobre A República a partir do dia 04/10. Inscrições podem ser feitas aqui.
“Não há nenhum escrito de Platão, nem haverá; e aquilo que agora vale como tal, provém antes de um Sócrates que foi belo e jovem.” (Pseudo-Platão, Carta II)
Faz quatro anos que escrevi um pequeno texto em que tentava justificar para mim mesmo minha paixão por Platão. Era um momento esquisito para mim. Havia terminado o doutorado faz alguns meses e estava procurando um projeto de pesquisa novo (além de um emprego). Ainda que eu não estivesse totalmente a vontade com esse fato, na época estava pensando fazer o papel de um scholar deleuziano. Como é o caso nesse grupo (caricatura ou precisão?) eu precisava encontrar alguma nota de rodapé ou referência obscura que me permitiria ter algo sobre o que escrever. Como sempre tive um interesse pela filosofia do idealismo alemã, acreditei que era um momento para explorar esse desejo. Decidi que, seguindo algumas indicações de Alberto Toscano e Iain Hamilton Grant, iria explorar as conexões entre Schelling e Deleuze no que diz respeito a um projeto de “filosofia da natureza”. Para fazer isso, porém, teria que ter uma leitura mais sistemática do Schelling. Bem, diante disso comecei pelo caminho que minha neurose sempre dita: pelo começo. No caso, tratava-se de um texto (fascinante) sobre o Timeu e o Filebo escrito pelo jovem Schelling. A questão é que nessa hora (e sobretudo considerando os comentários de Grant) me dei conta de que precisaria também ter um conhecimento mínimo de Platão para poder situar melhor esse ponto de partida schellinguiano. Deveria então ler esses diálogos. Bem, foi neste momento que a toca do coelho se revelou um abismo.
Até aquele momento (ou seja, 10 anos depois de ter começado a me envolver com filosofia), eu tinha lido pouco Platão. Havia lido o Fedro na graduação em um momento em que tinha como principal interesse a literatura e o problema da escrita — lembro que na época não achei grande coisa da crítica à escrita (ou talvez, pior, pensei “Platão babaca, ele está condenando a escrita em nome do fonocentrismo!!!”). Tentei ler A República e não avancei muito além do livro III. Talvez li a Apologia, mas não lembro. No mestrado lembro de ter lido O Banquete e o Fédon, nas edições bilingues que a EDUFPA estava começando a relançar, mas lembro que não retive muita coisa. No doutorado eu li O Sofista, a única leitura que tive uma impressão marcante. Mas como estava totalmente submerso no espino-deleuzianismo da minha tese, a coisa que me marcou naquela leitura foi que Platão era também um defensor da diferença. Devo ter tentado ler outras coisas, mas a coisa que me lembro. A impressão mais duradoura que tinha de Platão era do próprio ato de leitura. Eu só conseguia pensar meio impaciente: onde você quer chegar? Chega logo porraaaaa. Não conseguia entender em que direção ele ia, para que tantas voltas, porque não dizer logo de uma vez por todas suas teses, seus argumentos. É uma coisa meio cômica, pois hoje em dia é o contrário. Sinto que quero sorver o máximo de cada frase platônica, me demorar o máximo possível.
Mas enfim, como vinha falando, naquele momento, mais ou menos na metade de 2018, eu me pus a me reaproximar do Platão que interessava ao Schelling. Peguei para ler o Parmênides, o Filebo e o Timeu. depois o Foi uma coisa esquisita. Os textos pareciam muito mais ricos, mais visíveis. Se antes havia um muro difícil de penetrar de “por zeus”, “claro Sócrates”, “como não?”, nessa nova rodada de leitura parecia que eu conseguia enxergar teorias, ideias mais consistentes. Era como se eu conseguisse ver através dos diálogos. Claro que não era apenas o fato de que eu estava mais maduro (embora de fato, acho que isso aconteceu, nesta época eu já estava ficando cada vez mais impaciente em tomar partido na filosofia). Um dos efeitos de começar a dar aula (coisa que comecei. na metade do doutorado, uns dois anos antes) foi começar a olhar para os textos de filosofia de outra forma. A partir do momento em que precisava ensiná-los, era preciso ter um conhecimento maior de sua estrutura, de seus objetivos, dos problemas que ele buscava responder e das maneiras que ele se punha a respondê-los. Além disso, começava a consultar passagens bibliografia secundária para entender passagens que não compreendia. Estava certamente com medo de que alguém me perguntasse sobre um trecho do texto que não entendi totalmente (felizmente essa neurose recuou um pouco). Esse novo momento me fazia olhar para os textos filosóficos de outra forma. Mas há também outra coisa: nessas obras tardias de Platão, mais do que em outras, uma série discussões que são identificadas como “teses metafísicas” aparece com mais imediatez (e com menos voltas dramáticas e narrativas). Pude entrar em contato com um pensamento que era mais direto em seu caráter argumentativo e mais fácil de acompanhar (ainda que as ideias e teorias em si fossem bastante complicadas). Além disso, aquilo que aparece no Filebo, por exemplo, é bastante diferente da imagem que costumamos associar ao Platão. E ainda que seja um diálogo sobre a questão do prazer, lembro de fazer fichamentos enormes sobre o prólogo em que se discutia uma espécie de teoria das categorias que em poucas páginas apresentava uma forma de organizar as diferentes coisas que compunham a realidade. Ainda que no momento em que escrevi o “Por que Platão?” estava lendo já outras obras de outros momentos, é esse momento tardio que me guiava minha leitura.
Quatro anos depois, tendo percorrido de cima e baixo o corpus platônico (salvo As Leis, que não consegui ainda ler mais que 1/3), tendo lido e relido, estudado e ensinado inúmeros diálogos nos mais diversos espaços (na universidade, em grupos livres de iniciação à filosofia, em grupos para psicanalistas), minha relação com o platonismo mudou. Se antes eu acreditava que seria possível encontrar alguma teoria no pensamento platônico, hoje em dia estou cada vez mais convencido de que não há nenhuma ideia que pode ser atribuída ao Platão1. A única coisa que encontramos ali é um esforço constante de partir de situações singulares (problemas, confusões) que estimulam os interlocutores a examinarem suas ideias. O objetivo geral que encontramos nesse procedimento é avaliar as opiniões que se tem, testá-las, organizá-las com as outras opiniões que existem, para saber até que ponto elas estão nos ajudando a entender ou confundir uma situação. Uma consequência desse tipo de procedimento é que qualquer construção que é elaborada em um diálogo está estritamente ligada a esse contexto2.
Essa ideia de que Platão não tem ideias é uma forma menos sofisticada de dizer que não há nenhuma doutrina ou conjunto de conceitos que são totalmente desconectáveis dos contextos dramáticos em que eles surgem. Isso é algo que aparece de maneira clara no que se costuma chamar de diálogos de juventude (ou diálogos socráticos ou aporéticos). Nesses diálogos (como Lísis, Laques, Êutifron) há geralmente um prólogo dramático, em que uma série de ocorrências torna necessário examinar alguma ideia específica que no início os interlocutores creem conhecer bem. Assim, no Laques, vemos dois generais discordando sobre como treinar crianças. Para lidar com esse problema, Sócrates questiona eles sobre a função do treinamento. Ambos respondem que o objetivo é cultivar coragem. Nesse momento, porém, surge um ponto de indefinição: mas o que é a coragem? Cada general dá sua opinião sobre o tema como forma de propor definições. Em seguida, examinam os limites de cada uma e logo se dão conta que não é tão simples definir discursivamente um tipo de atitude que talvez não tenhamos dúvida de identificar na ação de alguém. Na Apologia ocorre uma situação parecida quando Sócrates questiona artesão sobre sua prática. Eles conseguem fazer determinados produtos perfeitamente, mas não conseguem explicar de maneira consistente o que fazem (sem cair em contradições, realizar generalizações indevidas etc). Essas situações repetidas em alguns diálogos acabam deixando claro uma certa distância entre o fazer e o dizer, entre práticas (corpos?) e linguagem. O problema seria mais fácil se simplesmente não conseguíssemos falar daquilo que não conseguimos fazer ou que não sabemos. Nestes casos a incapacidade de falar sobre algo está ligada aos limites da prática ou do saber. Nos casos em que sabemos algo (como um timoneiro sabe pilotar navios e como conseguimos identificar ações corajosas) se torna mais esquisito essa desconexão.
Acredito que é nessa confusão que vemos Sócrates perceber os limites da finitude humana: sua ignorância. Mas isso está longe de ser um gesto final. A verdadeira força do pensamento platônico ocorre quando pensamos o que fazer a partir dessa confusão e ignorância. Quando se entende que essa distância não é um acaso, um déficit, outra postura deve ser assumida (e que é assumida por Sócrates). O que há de interessante na prática de Sócrates (se como personagem histórico ou como personagem de Platão pouco me importa no momento) é a maneira como ele entende que tudo o que acreditamos saber sobre algo (as opiniões que temos sobre as coisas) tendem a atrapalhar a nossa capacidade de analisar, investigar e entender aquilo que queremos entender. Isso não significa, porém, que as opiniões são ilusórias, mas que se não conseguimos situá-las, vamos ter uma imagem geral equivocada sobre a situação. Trata-se, portanto, de ser capaz de organizar as opiniões que temos (encadeá-las, se quisermos usar uma ideia trabalhada no Mênon). O caso clássico dessa operação de reorganização aparece no mito da caverna. Como comentei inclusive no texto anterior, a operação de subida da caverna não é uma sequência de revelações em que se dá conta que as percepções anteriores eram falsas. O que se faz é entender que aquilo que acreditávamos que era toda a realidade (as imagens na parede), são uma parte específica da realidade contida num todo maior (são sombras, produzidas por um jogo entre um fogo e fantoches que se localizam acima das pessoas algemadas no fundo da caverna. Assim, ir subindo a caverna não é nada mais do que ser capaz de ir localizando com cada vez mais riqueza as relações nas quais se está imerso. Isso evidentemente é um movimento duplo: por um lado algo de particular é desinflado, deixa de ser geral, vai se tornando particular, relativo a detalhes específicos. Por outro lado, a imagem do todo vai se tornando mais rica na medida em que mais conexões vão se tornando disponíveis. Nesse sentido, pode-se ver que aquilo que a filosofia transmite não é nenhum conteúdo, conjunto de teses (algo que o próprio Platão julga ser impossível, como se vê no Mênon), mas uma certa disciplina.
É por isso, porém, que a ignorância socrática é tão fundamental. Só conseguimos dar os passos nessa direção apresentada acima se conseguimos nos livrar da ideia de que nossas opiniões efetivamente nos dão uma apresentação adequada da realidade. Somente quando começamos a questionar nossas opiniões (a localizá-las de maneira mais precisa) é que começamos a ficar livres para ganhar outro olhar sobre as coisas e explorar outros pontos de vista. Há na postura da ignorância um movimento que leva o sujeito a deslocar sua perspectiva ao ser capaz de compreender as redes de interdependência que dão sentido para aquilo que se pensa em determinada situação. Pode parecer bobo (mas não é, ou é da forma que toda filosofia está sempre próxima do trivial), mas ser capaz de entender como uma ideia nossa é na verdade apenas parte de um todo pode nos ajudar a inclusive apreciar essa ideia com mais clareza. É comum no aprendizado de algo novo (como uma nova receita, para aqueles inseguros na cozinha) nos prendemos rigorosamente aos seus detalhes. Devemos respeitar cada passo para conseguir realizá-la a ponto de nos desesperarmos se não temos um ingrediente ou um utensílio para realizar. Isso ocorre pois quanto mais desconhecemos uma situação, mais nos prendemos na pequena parte que conseguimos dominar. O efeito desse gesto de se prender ao que já se sabe, é uma diminuição do mundo, que se torna tão amplo quanto nossa capacidade de prevê-lo, de dominá-lo. Qualquer pessoa com mais experiência na cozinha sabe, porém, que essa forma de cozinhar, ainda que possa produzir resultados interessantes, só deixa o cozinheiro confinado num espaço restrito demais, sempre dependente de outras receitas. É apenas no momento em que se começa a questionar uma receita (substituindo, adicionando ou retirando um ingrediente, por exemplo) que se pode efetivamente começar a aprender a cozinhar. Ainda que talvez seja difícil começar sem receita (para quem começa a aprender tardiamente), em algum momento será preciso abandoná-la para ir descobrindo as inúmeras variações possíveis (e as impossíveis!) que vão ampliando o que se cozinha. Como no caso do mito da caverna, é preciso em algum momento suspeitar do que se faz, ser capaz de recusar que aquilo que se entende é tudo que há. Talvez seja por isso que Sócrates repete constantemente sua ignorância. Trata-se menos de uma constatação que um mantra que repete para se manter disciplinado, para evitar cair na tentação de tomar uma opinião como imagem total (por mais que ela possa nos oferecer algum consolo temporário ao nos localizar temporariamente no mundo).
Podemos agora entender a novidade que marca os diálogos de maturidade (como Fédon, O Banquete, Fedro, A República entre outros). Aquilo que costuma-se identificar como teoria das ideias não seria, portanto, nada mais do que uma construção teórica que permite dar sentido para práticas, atitudes, disposições ou problemas que não estamos conseguindo compreender em determinada situação. Não se trata porém de um saber definitivo sobre a estrutura da realidade (uma metafísica, uma lógica). Trata-se de um esforço do pensamento que estamos livres para fazer quando conseguimos entender os limites de nossas opiniões (ou seja, dos nossos pontos de partida). É por essa razão também que jamais encontramos em diálogo algum uma elaboração definitiva, sistemática (e desconectável) das ideias. Na maior parte das vezes (como no caso do Fédon, um diálogo em que se identifica essa teoria) a coisa aparece como um produto derivado de uma operação de pensamento que está interessada em algo mais concreto do que uma teoria universal. O que vemos, portanto, é a elaboração de argumentos que permitam situar e localizar com mais clareza nossos problemas sem que estejamos presos às nossas impressões iniciais.
É com isso em mente que construí, faz alguns anos, um pequena esquema que ajuda a entender esse movimento na obra platônica que descrevi acima:
O procedimento básico partiria de uma prática (canto esquerdo superior) que é realizada sem problemas, mas de muitas formas. Na hora de falar dessa prática alguém emitiria um discurso (uma opinião, dóxa) sobre essa coisa. Nesse momento, porém, a incapacidade de dar conta no discurso dessa prática ficaria visível a partir da diversidade de opiniões que se tem sobre algo. Esse equívoco, portanto, leva a um exame (elenchos) das opiniões. Assim, se conseguimos amar (e até aceitar outros amores que percebemos como afins), na hora de falar do amor, acabamos produzindo um discurso limitado que é facilmente contraposto a outros discursos que retém outros aspectos dessa pluralidade de práticas. Neste ponto, inicia-se a discussão sem fim que é interrompida pela postulação de que há algum conceito que deve justificar a unidade que observamos na prática. Quando aceitamos o limite do nosso ponto de vista, nossa ignorância, é possível levantar (livre do constrangimento das nossas opiniões).a hipótese de que deve haver algo como uma forma ou ideia que nos permite situar uma prática (os amores do mundo) que não são completamente conciliáveis no nível da linguagem (e das opiniões).
Isso não é um ato fácil, já que a especulação, nesse sentido, é um ato que não nos permite apoiar nossos encadeamentos em outra coisa que a capacidade de conectar as ideias por meio de argumentos. Diferente das opiniões, que nos permitem sempre jogar para um outro a responsabilidade por organizar aquilo que falamos (geralmente aparecendo sob uma fórmula cara a Deleuze de “todo mundo sabe que…”), ao filosofar nos tornamos responsáveis pelo que dizemos (sem poder nunca ter certeza que aquilo fará sentido para todos ou para sempre). Mas essa liberdade do pensamento não termina por aí. Nossa própria forma de se portar no mundo é afetada ao pôr em cheque nossas opiniões e supor que existem outras formas de unidade que transcendem nossa finitude (ao menos em tese — os processos concretos dessas transformações talvez sejam mais tortuosos e dolorosos). Assim, diferente das opiniões que nos ancoram a uma parcela do mundo (ou à maneira como o mundo é atualmente), a atividade filosófica nos permite entrar em outra relação com o mundo, nos permitindo explorar caminhos que talvez sequer estejam presentes no mundo tal como ele existe.
Esse processo ainda deixa uma questão em aberto. Em que circunstâncias esse processo é disparado? Essa situação não é simples. No mito da caverna, por exemplo, simplesmente se comenta que alguém se libertou de suas algemas sem explicar o porquê. E como poderia saber? De certa forma, se pensamos junto a Platão, o processo de libertação só pode ser experimentado inicialmente como uma violência em que somos obrigados a negar/confrontar aquela única coisa que nos ajudava a situar. no mundo: nossas opiniões (que muitas vezes não são mais do que reflexos da ordem social que vivemos). Somente a partir do momento em que se passa a fazer as conexões, em que se vai habituando a essa nova situação, é que se pode entender retrospectivamente a libertação. É com isso em mente que acredito que o elemento libertador acaba sendo o encontro com outras pessoas. Estas sequer precisam estar em si mesmas envolvidas em um processo de questionamento, mas devem evidenciar, nas conversas, nas trocas, uma certa incomensurabilidade de perspectivas. Para além do caráter histórico de Atenas clássica, a cidade acaba sendo o espaço em que perspectivas distintas se encontram (e que passam a ter suas distâncias expostas na medida em que se põe a conversar). A fala com outro pode, conforme aquilo que nos importa, nos interessa, nos move (mesmo que nem sempre visível inicialmente), nos deslocar para posições que não entendemos bem, como quando discordamos de alguém sem saber porque. Nestes casos, passa-se a questionar, por em revista, examinar aquilo que acreditamos, que pensamos, que escutamos (de nós e dos outros). Esse processo, o diálogo da alma consigo mesmo, não é um monólogo, pois ele pode ser descrito como um movimento que permite enquadrar nossas opiniões sobre o mundo (a cidade em que perspectivas se esbarram ao se ocuparem dos mesmos problemas) em que vivemos num contexto mais amplo (como presente nesse esquema, que deixo para explicar em outro momento, mas que foi extrapolado a partir de desenvolvimentos do Subconjunto de Prática-Teórica).
Mas poderíamos ainda insistir aqui nesse ponto: por que isso acontece? Dá pra cagar para muita gente, ser indiferente às suas diferenças. Por que então o outro dispararia esse movimento? Para responder a isso acredito que seja necessário realizar uma precisão a partir de uma citação do Mênon que me faz acreditar que não é um encontro com qualquer um. Lá, buscando explicar o que entende por dialética (como a arte de construir definições), Sócrates diz a Mênon algo que pode ser entendido como uma definição de filosofia:
Se é o caso, como tu e eu neste moimento, de que pessoas que são amigas queiram conversar uma com a outra, é preciso de alguma forma responder de maneira suave e mais dialética. Mas talvez o mais dialético seja não só responder a verdade, mas também por meio de coisas que aquele que é interrogado admita saber. Tentarei pois também eu falar assim contigo." (75d-e)
O que vemos aqui é que a filosofia se faz a partir da capacidade de um ponto de partida que garanta que ambas as partes estão no mesmo ponto. Este elemento não está necessariamente dado de início. Poderíamos inclusive suspeitar que talvez a filosofia é a aposta de que esse lugar existe. Assim, é preciso no mínimo enunciar o ponto compartilhado e que a outra parte concorde com esse ponto — o que não raro exige trabalho, pois exige também que cada uma das partes abra mão de algumas convicções e certezas. Nem sempre, porém, todo esse esforço de composição vale a pena. O próprio Platão escreve inúmeros diálogos em que há interlocutores que não desejam entrar no jogo da filosofia (Êutifron no Êutifron, Ânito no Mênon, Cálicles no Górgias). Isso me faz acreditar que a amizade é um aspecto essencial para quem faz filosofia. Somente um sentimento de ligação, de conexão, um carinho, um afeto, uma história, talvez nos faça sair de nossa perspectiva para se aproximar de um outro (e pode ser que no meio do caminho não valha mais a pena, há sempre um risco). Diria então que para Platão a filosofia ocorre, portanto, quando nos vemos diante um outro e a impossibilidade de reduzi-lo a nossa perspectiva. Se é possível evitar um ceticismo, um relativismo (que parecem derivar de incomensurabilidades), é porque há algo que move esses sujeitos a ainda assim buscarem compor uma relação que permita a eles trocarem algumas palavras entre si.
Depois dessas voltas talvez podemos responder (pelo menos no momento) por que Platão? Em primeiro lugar, pois Platão não possui nenhuma ideia (ou doutrina, ou teoria). Não precisamos coletar referências infinitas que nos tenham como objetivo nos garantir que tudo conhecemos, tudo sabemos (ou ao menos sabemos maximamente!) Para Platão trata-se do contrário: tudo o que importa é transmitir a filosofia como um esforço de entender nossas situações, questioná-las para além das aparências (aparência de ser um todo!). O que se busca com isso é, acredito, mostrar que a vida pode ser mais do que ela aparenta inicialmente. Isso é feito, por meio da aceitação da nossa ignorância. A refutação (e aceitação do fato de que vamos ser refutados, como disse já um colega platônico) é uma disciplina que pode nos permitir entrar em outras relações com nós mesmos e com o mundo. Agora, é importante enfatizar que essa posição não é cômoda, pois ela implica abdicarmos de uma capacidade de compreender (no sentido de tudo ordenara para a nossa perspectiva) o mundo integralmente. A disciplina socrática nos põe em uma situação incômoda de substituir uma nitidez local e um ruído global por um ruído local e uma nitidez global. No primeiro caso um sujeito se vê preso a opiniões que podem iluminar uma determinada circunstância (mostrando “como o mundo é”) com o custo de distorcer ou ignorar que há outros tantos pontos de vista na realidade. Na segunda atitude, socrática, abre-se mão de se prender a uma opinião em particular (que poderia tornar o mundo mais simples), para aceitar que há outras tantas formas de compor e organizar as ideias que temos na medida em que entramos em contato com outras posições, pessoas e perspectivas e que jamais vamos ser capaz de dar conta exaustivamente. O ganho que podemos ter nisso é, acredito, a capacidade de nos aproximar de quem amamos, de nossos amigos e de todos aqueles que ainda nem sabemos que amamos mas com quem podemos também compor outras formas de viver socialmente.
Por que Platão? Para ter mais a conversar.
Ou à atitude socrática que encontramos nos diálogos. Assim, quando me referir ao Sócrates, estarei sempre falando da personagem Sócrates dos diálogos, que é menos o ponto a partir do qual Platão emitiria suas ideias (como alguns já especularam) e mais uma certa atitude, um comportamento, que inclusive aparece em outras personagens com maior ou menor grau ao longo dos diálogos.
O ensaio “A autonomia do processo estético” de Alain Badiou ajuda a entender a diferença entre enunciados artísticos e ideológicos a partir da capacidade deles se descolarem com menor ou maior facilidade de seus contextos. Quanto mais é indiferente o local em que um enunciado aparece (quanto mais ele facilmente é descontextualizável), mais ele é “ideológico”, já que se não é a situação específica em que ele aparece que dá sentido para ele (a fala de uma personagem, o que implica que um determinado enunciado está relacionado à localização daquele personagem na trama, seus comportamentos etc), isso implica que o que dá sentido para ele é o mundo em que vivemos. Ainda que o argumento de Badiou seja voltado para a obra de arte, acredito de alguma forma que pode-se medir uma força de um pensamento pela capacidade dele ser mais ou menos desconectável dos espaços em que aparece. Se um enunciado pode ser facilmente dito em qualquer situação (“a realidade é composta de ser e devir”), então não sabemos muito sobre o que está em jogo. Quando porém o conjunto de argumentos vai ganhando sentido a partir de determinadas conexões com outros elementos, podemos dizer que talvez se trate de um pensamento autônomo por não ganhar seu sentido no mundo tal como ele é, mas sim num encadeamento singular que precisa ser construído e composto com cuidado. Esse ponto, porém, ainda preciso elaborar melhor, sobretudo com relação à transposição do fenômeno estético para o fenômeno do pensamento.
Texto bem divertido e esclarecedor, eu adorei!
O senhor poderia recomendar as melhores edições pra ler a A República, Mênon e O Sofista?