O "trabalho livre" fora do lugar (parte 2)
notas sobre "Artes plásticas e trabalho livre" de Sérgio Ferro
Esse texto é a segunda parte de um texto sobre Sérgio Ferro e o problema do trabalho livre. A primeira parte pode ser encontrada aqui.
O resumo que fiz talvez tenha sido um pouco mais longo do que tinha planejado, mas ainda assim acho que ele permitirá entender um pouco melhor em que medida o Sérgio Ferro “resolve” alguns problemas que me ocupam. O primeiro deles está ligado ao problema do mapeamento cognitivo. Esse conceito, apresentado por Fredric Jameson em um ensaio de 1983, é uma tentativa de desenvolver ferramentas para compreender a sociedade capitalista moderna. Para ele, uma das novidades do capitalismo (sobretudo a partir do que ele chama de estágio imperialista, fazendo referência à Lênin) é a crescente opacidade da realidade social para os sujeitos que estão nela imersos. Como sintetiza Jameson:
“enquanto em outras sociedades, e talvez até nos estágios anteriores do capital de mercado, a experiência imediata e limitada dos indivíduos ainda é capaz de abarcar e coincidir com a verdadeira forma econômica e social que governa aquela experiência, no momento seguinte esses dois níveis se afastam progressivamente e realmente começam a constituir aquela oposição que a dialética clássica descreve como Wesen e Erscheinung, essência e aparência, estrutura e experiência vivida.”
O problema dessa opacidade que se instaura entre os sujeitos e as sociedades na qual estão imersos é que à medida em que a complexidade e extensão das estruturas sociais determinantes excedem os limites da experiência, os indivíduos ficam sem pontos de referência que permitam que eles ajam politicamente. Se a experiência do sujeito está separada das estruturas, não é possível que um indivíduo localize os pontos de ação relevantes que vão transformar as estruturas sociais em direção aos seus objetivos políticos ou avalie os efeitos sistêmicos de suas intervenções. A ideia de realizar um mapeamento cognitivo aparece como uma forma de superar essa distância produzida no interior do capitalismo moderno. Esse conceito elaborado por Jameson, é inspirado nas reflexões do livro “A imagem da cidade” do urbanista Kevin Lynch. Neste livro o autor mostra como a navegação e habitação em uma cidade depende também da capacidade de produzir mapas mentais desses espaços que excedem a perspectiva local de um sujeito. Assim, o que se vê é que quando elementos da cidade são bem dispostos (como monumentos, fachadas, estruturas arquitetônicas, etc) estes acabam produzindo imagens mentais que permitem aos sujeitos conhecer melhor o espaço que circulam mesmo que não tenham em sua mente todos os seus detalhes.
Como Jameson não está preocupado apenas com a circulação dos cidadãos nas metrópoles, mas sim a agência política no capitalismo tardio, o que ele propõe é “uma extrapolação da análise espacial de Lynch para o campo da estrutura social, isto é, em nosso momento histórico, para a totalidade das relações de classe em uma escala global (ou melhor, multinacional).” Para o crítico literário, trata-se portanto de conseguir encontrar imagens que remetem à estrutura social que seria inacessível de modo imediato para os sujeitos individuais. Isso é essencial para podermos nos situar politicamente pois, como diz Jameson, “a incapacidade de mapear socialmente é tão debilitante para a experiência política quanto a incapacidade análoga de mapear espacialmente o é para a experiência urbana.”
É importante notar aqui que a proposta de um mapeamento cognitivo elaborado por Jameson se restringe ao campo estético. As causas dessa restrição são explicadas ao final dessa conferência após a filósofa Nancy Fraser perguntar o que motiva essa restrição e também o que impede que o mapeamento seja feito pelas ciências sociais. Ao responder essa questão o filósofo explicita a segunda referência na elaboração de seu conceito de mapeamento cognitivo. O privilégio do estético seria uma decorrência de o autor se apoiar na distinção de Louis Althusser entre ciência e ideologia. Assim, enquanto a ciência seria um discurso sem sujeito, a ideologia funcionaria como a “representação imaginária da relação do sujeito com suas condições reais de existência.” A ideologia não seria um elemento puramente negativo, mas aquilo que faz com que um sujeito localize suas experiências na estrutura social em que está inserido. Há portanto um mapeamento da realidade social presente nessa operação na medida em que o imaginário de um sujeito apresenta as coordenadas que permitem ele agir na sociedade sem que ele tenha um acesso imediato à totalidade social. O que isso implica é que as diferentes ideologias são diferentes maneiras de se relacionar com a totalidade social que condiciona a experiência dos indivíduos por meio da imaginação.
Dessa forma, ainda que análises feitas a partir das Ciências Sociais possam ajudar a compreender o mundo, para Jameson estas não se dirigem diretamente ao sujeito da experiência enquanto ferramenta de integração do indivíduo ao todo que o cerca. Isso impediria, portanto, que os modelos desses campos científicos sejam tomados como mapas para orientar a ação política dos indivíduos. Assim, as artes são privilegiadas por Jameson por serem práticas ligadas aos sujeitos da experiência (elas ao mesmo tempo são produzidas por sujeitos e, num segundo momento, são consumidas por sujeitos) de modo que nelas há “algo que se dirige à experiência individual em vez de ser algo que conceitualiza o real de maneira mais abstrata.”. A arte ao comportar em si um conteúdo ideológico mapeia a realidade ao articular a experiência individual em uma estrutura geral inacessível do ponto de vista subjetivo. As obras de arte não são, porém, apenas um mapeamento de um presente estático. Sendo produtos do imaginário, há nelas um elemento experimental que faz com que elas muitas vezes acabem veiculando não apenas mapas do mundo presente, mas mapas para mundos possíveis. Esse elemento, pensado por Jameson a partir da ideia de utopia, tornaria o mapeamento estético politicamente relevante.
É devido a essa restrição, porém, que acreditamos ser necessário ir além de Jameson. Ainda que um mapeamento estético da realidade possa nos ajudar a nos situar no mundo, a proposta jamesoniana mantém os sujeitos na posição de espectadores individuais. Assim, o que se preserva com esse gesto é a figura de um sujeito individual como agente privilegiado da política (no caso, igualando o espectador de uma obra com o agente político). Isso nos parece contraprodutivo se considerarmos que o campo da política é justamente aquele em que a experiência não se restringe ao sujeito individual. Essa limitação se torna ainda mais problemática quando consideramos que a própria ideia do sujeito individual como uma perspectiva privilegiada está ligada à sociedade moderna. Além disso, essa restrição da experiência ao sujeito individual acaba por bloquear a reflexão sobre que tipo de experiência poderia ser compatível com as estruturas sociais. Diante disso, é necessário então investigar se é possível realizar alguma forma de mapeamento cognitivo que não reduza a articulação entre experiência e estrutura ao ponto de vista de um sujeito individual.
É nesse momento que parece que a reflexão de Ferro pode ser útil. No lugar de simplesmente analisar as obras de arte como soluções de mediação entre indivíduo e sociedade, temos uma análise das soluções estéticas como frutos de experimentos de reorganização social1. Ainda que talvez seja forçado tomar os artistas como “ativistas” ou como “coletivos”, Ferro mostra de maneira convincente como uma outra maneira de se posicionar no mercado acaba revelando a tensão entre liberdade e subordinação (ou autonomia e heteronomia) presente no mundo do trabalho. Então, podemos aqui avançar num ponto em que Jameson para. Se atentarmos para os processos produtivos, para as técnicas, o que encontramos não são vestígios do mundo reduzidos à visão do espectador, mas também os sinais das transformações sociais que tiveram que ocorrer para que aqueles traços pudessem ser feitos. As solucoes esteticas são elas proprias frutos de reorganizacoes sociais. No lugar de simplesmente mapear a totalidade social, a pratica artistica se reorganiza de modo que outras coisas se visibilizam, inclusive em tensão com a totalidade social na qual ela se insere. O efeito disso é que o mundo se mostra mais amplo do que sua configuração atual. Assim, se Jameson pensa o mapeamento cognitivo como um mundo que é sensibilizado para um indivíduo por meio de uma mediação estética, Ferro nos permite pensar o outro pólo da organização não mais como um indivíduo estático, mas como algo que pode se organizar de outras formas, visibilizando elementos no mundo que demonstram também sua contingência.
Mas isso não é tudo, pois parece que também o procedimento que encontramos em Artes Plásticas e Trabalho Livre leva adiante (se voluntariamente ou não pouco importa) uma noção de um de seus principais interlocutores, Roberto Schwarz. Trata-se da questão das “ideias fora do lugar”, que procura dar conta dos efeitos do deslocamento de uma série de conceitos liberais (revolucionários?) para a periferia que é o Brasil. No lugar de uma tragédia em que nunca conseguimos estar à altura dessas ideias, o giro de Schwarz acaba mostrando como o deslocamento das ideias para esse território inóspito acabaria construindo uma comédia. A circulação das ideias liberais em território nacional revelam duas contradições. A primeira no interior do país, visto que as elites que buscavam aumentar o desenvolvimento econômico baseado na exploração de pessoas escravizadas ou livres, acabavam mobilizando no plano discursivo ideias que projetavam um mundo que levaria à extinção dessas práticas opressoras. Enquanto na Europa elas mapeiam um curso de tendências sociais, no Brasil elas perdem seu lastro social e servem como forma de distinção social das elites2. Em outro plano, a circulação dessas ideias (de independência, autonomia, liberdade, justiça, etc) eram sustentadas no momento em que se consolidava divisão internacional de trabalho que configurava relações de dependência econômica entre as metrópoles e as ex-colônias que passavam a servir de periferia submetida aos interesses econômicos externos. A circulação das ideias para fora de seus espaços de origem revelava, portanto, a verdade inconveniente dos progressos da história.
Acredito que o movimento articulado por Ferro seja uma dupla torção do gesto de Schwarz que permite apontar (telegrafar?) quais tipos de movimentos nos encaminhariam para práticas comunistas. Assim, não acho que seja apenas um mero jogo de palavras dizer que sua obra seja uma tentativa de descrever o “trabalho livre fora do lugar”. A primeira torção é mais simples de pensar: enquanto Schwarz trata do campo discursivo das ideias, Ferro se mantém no nível do trabalho manual3. O que ele descreve são deslocamentos no nível de práticas produtivas. Temos um tipo de atividade manual indigna socialmente (o trabalho artesanal) que se reorganiza e se torna uma atividade manual que exerce outras funções e outros fins num outro contexto. Assim como no caso das ideias fora do lugar, essas prática não deixa de revelar uma série de contradições nesse processo: na mesma medida em que ela não poder abrir mão de seu aspecto material (já que é a parte inexpugnável de sua atividade), ela precisa o tempo inteiro disfarçá-lo. Como se trata de uma prática, porém, esse processo de disfarce, essa sua reorganização, se dá no nível técnico e material. Assim, o que se “desloca” (sem que o lugar anterior dessa prática seja seu lugar “apropriado”) é uma atividade produtiva.
Há porém uma outra torção, talvez mais delicada, e por isso mesmo mais interessante. Como vimos, as ideias se deslocam globalmente, indo de um sistema social metropolitano para um sistema periférico e revelando nesse processo a verdade das ideias e do mundo. Nem as ideias vão nos libertar, nem o mundo está marchando na direção certa da história (sobretudo se levarmos adiante os diagnósticos recentes de periferização dos centros, que encontramos nas análises de Paulo Arantes): O mundo é menor do que gostaríamos e nossas ideias mais ocas.
No caso da atividade produtiva, parece ocorrer um desenvolvimento invertido. Tratam-se de práticas que no lugar de se deslocarem externamente, se metamorfoseiam internamente (elas se reorganizam, são talvez donas de uma outra interioridade). Ao se transformarem, elas passam a ocupar uma outra posição no mesmo mundo. Ao se utilizar de desenvolvimentos técnicos para se afastarem do trabalho artesanal, os artistas plásticos conseguem, em alguma medida, se libertarem de regimes de trabalho opressivos que estavam começando a tomar as oficinas. Os efeitos desse deslocamento, porém, não ficam por aí. Ao se portarem como “trabalho livre” por meio de uma série de negações determinadas (e ao conseguirem efetivamente ocupar essa posição, como “amostra”, nas palavras de Ferro), elas acabam demonstrando a possibilidade de uma outra forma de se relacionar à reprodução social até então inédita (ao menos segundo Ferro). Considerando que se trata de um mundo que é cada vez mais submetido à lei do valor, a atividade artística consegue temporariamente escapar desse tipo de subordinação ao produzir obras que não podem ser mensuradas pelo tempo de trabalho socialmente necessário4. É certo que essa liberdade nunca é total, e nem poderia ser, pois essas atividades artísticas, como diz Ferro, “são amostras do trabalho livre — o que nossa sociedade não admite.” (p. 200). As próprias contradições que se encontram nas obras são as marcas do processo de interiorização dessa atividade (e insubordinação às demandas externas), interiorização que não se completa pois não escapa totalmente ao seu mundo. Assim, elas se acumulam formalmente no trabalho (sobretudo na obra de Velázquez, exemplo trágico dessa narrativa de Ferro) e acabam por emitir sinais da impossibilidade de conquistar totalmente a liberdade no mundo que vivemos.5
É preciso deixar bem claro que essa liberdade (incompleta ou relativa) produzida pelas artes plásticas não surge de fora para dentro, como uma se houvesse de antemão uma ideia do que é ser livre que serve de orientação prévia para reorientar o destino do trabalho artesanal6. As análises de Ferro pretendem deixar em evidência que o desenvolvimento das artes plásticas no renascimento (e a emancipação que elas trazem) são uma consequência de um esforço de fugir dos constrangimentos enfrentados pelas práticas artesanais que já existem no mundo. É por essa razão que a história desse afastamento é tão importante: elas mostram cada etapa do distanciamento como efeito de um rearranjo no interior da atividade. Esse afastamento, porém, pode ser encarado de duas formas. De um lado, eles são a negação determinada da atividade artesanal. Ou seja, olha-se para o trabalho artesanal (e para a subordinação na qual ele está implicado) como algo que deseja-se evitar.
Por outro lado, ao construir essa fuga, acaba-se desenhando positivamente algo que não tem lugar nesse mundo: um trabalho livre. Esse trabalho livre, que não existiria antes7, não poderia ser totalmente explicado pelo funcionamento desse mundo na medida em que ele é uma ocasião em que sua lei (a lei do valor) é suspensa. Ainda assim, como o mundo em que ele se inscreve ainda é regido por determinações capitalistas, um dos efeitos da aparição desse tipo de atividade é a revelação, de relance, que o mundo, a realidade social, pode ser mais do que ele é8. É como se as dificuldade inerentes a essa atividade acabassem testando e experimentando os limites do mundo em que vivemos.
Não é à toa que Ferro irá destacar tanto como esse trabalho artístico não pode ser compreendido apenas partir da ideia de “expressão”. Essa ênfase no aspecto expressivo para ele indicaria que antes da operação já se têm pronto aquilo que se deseja produzir. Neste caso então o trabalho produtivo estaria se subordinando inteiramente a uma ideia prévia. A atividade produtiva só encontraria sua liberdade quando ela caminhasse entre expressão e a observação/experiência. É esse encontro que leva essa atividade em direção a uma invenção que não pode ser totalmente delimitada de antemão (que não pode subordiná-la, como um plano desenha uma obra, como instruções de um chefe comandam seus empregados). Como aponta Ferro:
“A expressão coabita atualmente com a observação ou a experimentação. O impulso mimético e seu inverso, a expressão, introjeção e projeção são deslocamentos de momentos do produzir: a escuta do que ocorre, do que se apresenta diante do produtor a cada passo de sua intervenção e a escolha de um dos desenvolvimentos possíveis daquilo que assim se apresenta. Incorporação, estudo, observação do material, dos instrumentos em seu andamento produtivo; decisões, preferências a partir das virtualidades que o mesmo andamento abre. (p. 218)
É por isso que talvez nenhuma outra figura em seu livro encarne o aspecto emancipador das artes plásticas como Caravaggio. Para Ferro, trata-se do momento em que o caminha da pintura se encontra como conciliação entre os limites do material trabalhado com o desenvolvimento desejado.9 O que isso significa é que a liberdade não diz respeito apenas a uma saída para fora do mundo do capital (isso seria seu aspecto negativo, digamos). Trata-se também de uma atividade que acaba sendo livre para construir seu conceito e suas ideias no interior do próprio processo produtivo, como emergindo a partir das resistências que se encontra no ato de pintar.10 Nesse contexto o esforço por manter vivo no produto final as marcas da atividade produtiva (os vestígios de incompletude, como no caso do non finito) ganham outro sentido. Trata-se de colocar no centro dessa operação o desejo de invenção constante (uma prática “antitradicionalista”, como diz Schwarz em sua resenha do livro) que preserva uma abertura que raramente há condição de exercer nesse mundo em que é preciso realizar trabalhos subordinados (aos conceitos de outros, aos desejos de outros, aos dinheiro de outros).
O artista que tem condições de entrar nesse trabalho livre se vê tomado em um trabalho de livre-associação11 que o liberta (ao menos tendencialmente, pois na prática a coisa encontra outros freios) até mesmo de ser como si mesmo, de ter que repetir suas conquistas anteriores. A liberdade de sequer precisar se imitar (e muito menos de imitar um plano já pronto), de poder seguir se transformando a cada passo que se dá devido às novas situações que os ensaios e experimentações produzem, acaba configurando o aspecto positivo do trabalho livre. Trabalho livre; sim, mas fora do lugar pois sua concretização mostra que não há lugar para ele nesse mundo. Pode-se dizer então que essas transformações apontam para um outro conjunto de demandas e expectativas (talvez aquelas que nos referimos quando utilizamos o termo comunismo) que excedem aquelas que são autorizadas em nosso mundo.
Mas essas transformações não são elas mesmas finais. A possibilidade concreta (posto que em parte realizada) do trabalho livre é antes o motor que faz avançar essa atividade do que alguma conquista definitiva. É por isso que podemos dizer que o interesse na narrativa que Ferro faz dessa atividade está justamente nos impasses que a impedem de fechar-se em si mesma: sua finalidade constantemente basculando entre o desejo de se fazer conceito (e se libertar dos sofrimentos a que são submetidos os trabalhadores manuais do mundo em que ela vive) e de conquistar essa fuga por meio de um confronto com a matéria que lhe serve de suporte (e que a joga de volta no colo do trabalho manual). Como Ferro aponta, esse trabalho não chega a se emancipar absolutamente (afinal, isso dependeria de sermos todos comunistas). São, portanto, seus próprios impasses que tornam visíveis a existência de um caminho que vai da subordinação à liberdade. Vê-se portanto a segunda torção no procedimento de Schwarz: de um lado, ideias ocas que revelam um mundo menor; do outro, práticas manuais densas (repletas de contradições) que indicam que o mundo pode ser mais do que é12.
Essa dupla-torção operada por Ferro não me parece, porém, uma “superação” ou “correção” de Scwharz. Me parecem dois movimentos complementares atentando para direções diferentes do mesmo problema. Se Schwarz traça um curso negativo ao descrever as condições do terreno, Ferro parece indicar como deve ser o canteiro de trabalho13 que aponta, mesmo que por uma pequena amostragem, a via positiva da hipótese comunista. Me pergunto se isso não seria uma chave para saber o que procurar no mundo, para quais movimentos devemos atentar?14
A ideia de “experimento” aqui é devedora das pesquisas do Subset of Theoterical Practice. Para uma análise desse ponto, recomenda-se a leitura do capítulo “V. Political Experiments” no Atlas of Experimental Politics. Para uma apresentação recente que resume essas pesquisas, ver:
Como Schwarz sugere, há também um caminho mais positivo: “Não impede contudo que ele tenha outras funções. Por exemplo, ele permite às elites falarem a língua mais adiantada do tempo, sem prejuízo de em casa se beneficiarem das vantagens do trabalho escravo. Menos hipocritamente, ele pode ser um ideal de igualdade perante a lei, pelo qual os dependentes e os escravos lutam. A gama de suas funções inclui a utopia, o objetivo político real, o ornamento de classe e o puro cinismo, mas exclui a descrição verossímil do cotidiano, que na Europa lhe dá a dignidade realista.” (Schwarz, R. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 171)
Mesmo que, sabemos, a diferença entre trabalho manual e intelectual é muito mais complexa do que essa divisão vulgar costuma fazer parecer.
Isso não é um efeito das obras serem “especiais” ou serem feitas “com mais cuidado”. É importante mencionar isso para evitar que se recaia em alguma espécie de metafísica da obra de arte. O esforço de reorganização dos artistas é sobretudo no campo social. Eles delimitam o caráter singular de sua arte na medida em que se opõem às demandas socialmente reconhecíveis do trabalho artesão. Não há portanto nenhum valor em si no non finito. Ele não é “intrínsecamente livre”, como se pode ver na maneira como hoje em dia há todo um mercado de produtos “deixados pela metade”. Se o non finito se estabelece como um elemento relevante da prática artística do renascimento, isso é uma consequência de se buscar se afastar do trabalho artesanal. Caso essa característica seja incorporada no trabalho artesanal subordinado ao mercado, então ela deixa de ter seu caráter emancipatório.
Cabe avaliar em que medida esse tipo de procedimento pode ser localizado em outras formas de arte. A princípio, uma das intenções que tenho é junto de Júlia Manacorda investigar se é possível ler a New York School (um grupo de pintores e poetas) a partir de suas práticas de composição como capaz de produzir novas formas de inteligibilização da realidade social. Isso implicaria retomar os procedimentos de Ferro em um âmbito que ele, a princípio, não considera tão preso à “atividade manual” (a escrita poética).
“O que a arte revela é a ‘nostalgia, a necessidade, a antecipação’ por seu outro, do qual ela é a sombra, como trabalho efetivamente livre. O protesto da arte vem, no fundo, do seio do trabalho submetido, não de fora dele.” (p. 171) Podemos até dizer que em alguma medida pode haver uma ideia, bastante oca, vaga de liberdade. Que exista um ideal em alguma medida que parece ser importado da cultura humanista (Ferro faz uma menção a isso, ao desejo das artes plásticas se tornarem em uma arte liberal, embora isso não seja amplamente desenvolvido) é possível, mas esse ideal não explica totalmente a liberdade que irá aparecer na prática artística por lhe faltar qualquer tipo de relação com o trabalho manual intrínseco às artes plásticas. Como diz Ferro: “Livre aqui não remete à liberdade abstrata, genérica. Significa que os artistas fazem e salientam o que o artesão parcelado pela manufatura não pode mais fazer, o que está perdendo, dentro de um ofício bem delimitado. Daí a centralidade, para nós, da fatura, da ação produtiva que ancora a oposição social na prática concreta, o ‘cérebro’ no ‘real’.” (p. 13)
Seria interessante relacionar as análises de Ferro com a leitura materialista que Kojin Karatani faz do início da filosofia grega na Jônia. Cf. Isonomia.
Um gesto análogo parece se encontrar em um famoso trecho de Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos: “Quando os artesãos comunistas se unem, vale para eles, antes de mais nada, como finalidade a doutrina, propaganda, etc. Mas ao mesmo tempo eles se apropriam, dessa maneira, de uma nova carência, a carência de sociedade, e o que aparece como meio, tornou-se fim. Este movimento prático pode-se intuir nos seus mais brilhantes resultados quando se vê operários socialistas franceses reunidos. Nessas circunstâncias, fumar, beber, comer, etc. não existem mais como meios de união ou como meios que unem. A companhia, a associação, o entretenimento, que novamente têm a sociedade como fim, basta a eles; a fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho.” (Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, p. 146)
“Caravaggio, sob esse ângulo, é o primeiro pintor que assume seu material integralmente, não se impondo a ele, mas acompanhando passo a passo sua lógica, sem tentar reaprorpriá-lo como expressão do ego. A démarche (procedimento) é inteiramente racional: assim como o material pressupõe sua escolha, sua ação é pressuposta pelo material. A consciência de si é a consciência do que faz com o seu material.” (p. 170)
“Agora, com a primazia do ‘furor’, da visão tateante e pessoal, o ensaio sem guias fixas conduz o processo criativo. Guardar a lembrança do começo do concetto, é quase um manifesto: indica-se assim que seu desenvolvimento ocorre durante e graças à produção, que o concetto não está pronto no cérebro do autor, apesar dos conselhos dos tratados maneiristas. Inconscientemente, talvez, esta prática contrapõe-se frontalmente à dos trabalhadores, que são obrigados a executar de modo fiel e forma parcelar decisões alheias e anteriores. O artista não apenas parte de sua própria imagem interior mas, evitando o desenho do cartão preparatório, realça o papel formador de sua atividade material — uma clara demonstração do poder criador do trabalho livre.” (p. 152)
“A imagem oriunda do esboço e do componimento inculto é condensação (as que provêm do modelo ou do imaginário também, mas, em princípio em menor dose). Ela acolhe diversas correntes associativas, como diz Freud, semelhante às imagens do sonho (conhecem, inclusive, deslocamentos e são fruto de figuração). É um palimpsesto de muitas camadas. Mas, para o que nos importa aqui, é condensação também de seu processo produtivo.” (p. 115)
As análises de Renzo Barbe em sua apresentação sobre a economia política de conflitos sociais a partir das ocupações de escolas paulistas entre 2015-2016 parecem abrir um caminho para formalizar os impasses aqui apresentado de maneira mais completa:
Cf. Arquitetura de Arestas de Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá.
Nenhuma das reflexões acima seria possível sem as discussões realizadas no interior do Subset of Theoretical Practice. Para mais informações basta visitar nosso site: theoreticalpractice.com