Uma coisa que eu tenho pensado ultimamente é: qual o tipo de futuro que eu gostaria de ver pra minha disciplina (considerando aqui a filosofia) e onde que essas pessoas se encontram no mercado de trabalho. É uma coisa bem complicada e que me deixa bastante apreensivo.
Me deixa apreensivo em primeiro lugar pois não parece ser um modelo reprodutível. A crise na academia não parece ser apenas nacional (eu diria inclusive que ela chegou um pouco atrasada no Brasil — já que a gente vê gente reclamando de "adjuncts" nos EUA desde 2009-2012).
E o que eu acho que desponta como duas opções parece que não se casam muito bem entre si no mercado de trabalho, não se combinam. De um lado eu acho que tem dois grandes impulsos (tendências geradas ao longo da história da disciplina): a historiografia e a transdisciplinaridade.
(Nota: vou tratar essas tendências como pólos, pois na prática é claro que elas se misturam e complicam o que estou tentando descrever)
A primeira é o que eu costumo chamar de história da filosofia. Certamente eu teria que ampliar isso para englobar o mercado anglo, mas eu suspeito que boa parte do que chamamos de filosofia analítica também tem o mesmo caráter de "passar em revista" outros textos.
Nesse caso trata-se de um tipo de estudo que realmente encontra pelo em ovo. É uma coisa muito bonita e sedutora você ver o quanto as coisas tem de profundidade. Eu acho impossível passar pela disciplina (embora claro, exista) sem se sentir minimamente afetado pelo potencial.
Além disso, por partir de um corpus de referências mais ou menos estáveis (os "clássicos"), ela também permite que se crie referências que localizem os pesquisadores, que permitam que eles sejam mais ou menos mensuráveis num campo profissional.
Esse tipo de profissional também tem um elemento muito bom. Sua lida e hábito com a tradição faz com que costumem ser professores excepcionais. Sem dúvida meus melhores professores na faculdade (pensando em dois em particular) eram feitos a partir desse molde.
Supondo que tudo caminhe de forma esperada, a gente acaba então tendo um circuito em que produz-se um profissional competente que vai ser futuramente absorvido pelas universidades e é plenamente capaz de perpetuar a disciplina (gerando futuros professores e assim por diante).
O primeiro problema desse pólo aparece aí: trata-se de uma forma "narcísica" da disciplina. Claro que muita coisa rica e interessante acontece e aparece, mas não deixa de ser uma forma de continuar dando legitimidade a essa "empreitada histórica" ao preservar seu lugar.
Não é à toa que o que acaba sendo produzido nesses contextos — na maior parte das vezes — acaba sendo de interesse de quem já está dentro da disciplina. Enfim, tem um caráter centrífugo perigoso na história da filosofia se ela se torna a tendência dominante.
Felizmente há outra tendência na filosofia que a gente poderia chamar (com muitas aspas?) de "transdisciplinar". Eu tou aqui de alguma forma encurtando e sintetizando um processo que acho que dura alguns milênios e que tem a ver com autonomização de campos próximos à filosofia.
Acho que o próprio desenvolvimento da filosofia (e do mundo) acabou fazendo com que o filósofo fosse tendo cada vez menos participação no desenvolvimento da ciência, da política, das artes. Isso não significa que deixa de haver contato ou misturas, mas algo mudou.
De maneira breve eu diria que foi a complexificação desses campos que fez com que eles não fossem tão facilmente manejáveis por quem se engaja com eles. Uma coisa é acompanhar os avanços mais recentes da física na época de Descartes, outra agora.
A universidade moderna acelerou isso por meio da construção de um modelo de organização da produção intelectual que também trazia consigo uma possibilidade reprodução da vida material no contexto capitalista (ou seja: empregos).
Bem, voltando pro que falava, a tendência transdisciplinar é um resultado dessa autonomização. Em vez de filósofos contribuirem diretamente com as ciências (humanas ou naturais), ele acaba sendo alguém que dialoga com elas, que pensa junto com elas (sem ser o produto).
Eu diria que isso é o caso também para outros campos. O filósofo não é mais conselheiro político (embora isso apareça aqui e ali de modo fetichizado), mas trabalha junto com cientistas sociais, com governos, com militantes (a ponto de as vezes não ser reconhecido como filósofo).
Um campo em que isso acontece também é na estética (embora reconheça que há bem mais elementos complicados do que abordo). O filósofo deixa de ser o crítico (como Platão e Aristóteles) e vai se tornando especialista em estética, que dialoga com a crítica de um campo artístico.
Resumindo (pois acho que já foi bastante longe), o filósofo transdisciplinar seria alguém que apesar de uma formação no campo, ocupa uma posição intermediária pela sua relação com áreas que estão para além do que se concebe tradicionalmente como filosofia.
Assim ele ocupa uma posição de duplamente excluído. De um lado ele está do lado de fora do campo que ele se aproxima. Um filósofo da física não é um físico. Pode haver cumplicidade, troca e diálogo e até construção em conjunto, mas não se confunde os papeis.
Por outro lado, ele também está excluído da filosofia. Ele não produz textos historiográficos, que podem ser mensurados e compreendidos por todos que estão no campo (pois todos partilham de uma formação de leitura dos clássicos).
Eles até possuem uma formação igual àquela dos historiadores, mas não usa da mesma forma. Pois em vez de usar sua perícia em leitura e distinção conceitual para analisar os clássicos, ele usa essa habilidade (mas que habilidade? é difícil até falar isso) em outros campos.
E mesmo aí a coisa é esquisita. Pois como falei ele também não é exatamente alguém do outro campo. Ele está ali mas com outra coisa em mente e também tem muito menos conhecimento do campo do que aquelas pessoas e aqueles textos que ele estuda.
É uma espécie de intruso pois por mais que ele se dedique a conhecer e entender o outro campo, se ele fosse virar um cientista ou um crítico de fato, era melhor deixar de ser logo filósofo (e alguns deixaram de fato, seja lá o que era a filosofia).
Mas então o que ele faz? Minha impressão é que de um lado ele força aqueles do campo a que ele se dirige a também falarem uma outra língua (como ele de certa forma, ao sair de seu campo de origem). Ele é alguém gentil, interessado que seduz o dono de casa a responder a gentileza.
Além disso, é preciso levar em conta a complexidade dos saberes. As coisas estão tão autonomizadas que se torna difícil comunicar diferentes áreas (mesmo que estivessem bem próximas no nascimento de uma determinada área).
Certamente não tou esgotando as funções aqui desse filósofo transdisciplinar, mas acho que uma das coisas que ele produz é uma síntese do que se produz em determinada área que poderia ser consumido por *qualquer um*.
Então nessa tendência, longe de legislar sobre os outros campos (como a filosofia costuma aspirar, resquícios de outros momentos históricos), acaba funcionando como um leva e traz, um mensageiro que pode acabar transmitindo o que aprendeu com outras pessoas.
E nesse caso essa mensagem pode chegar em pessoas de campos afins, de campos opostos, em uma suposta esfera pública, na própria instituição filosófica ou até em outros mensageiros transdisciplinares (que também carregam as suas sínteses).
É certo que tou talvez forçando a barra com essa ideia do filósofo transdisciplinar. Mas acho que de alguma forma é bom também mostrar que uma das tendências da filosofia é ainda se relacionar com o mundo. Mas como o mundo está mais complexo, a forma de relacionar também mudou.
Daí essa minha hipótese que o filósofo transdisciplinar acaba sendo o que é possível hoje em termos de diálogos entre diferentes campos. Antigamente os próprios filósofos faziam essas operações diretamente, mas, sobretudo com as universidades, isso tende a ser impossível.
Inclusive fico com a impressão de que a formação clássica dos filósofos transdisciplinares é que os deixa aptos a tentar essa loucura. Pois eles justamente se formam vendo aqueles filósofos de outros tempos se movendo como se não houvesse nenhum problema entre vários campos.
Esse ponto acredito que é importante pois deixa claro como a tendência historiográfica é fundamental para que os filósofos transdisciplinares possam vingar. São os grandes professores-historiadores que transmitem o desejo de transdisciplinaridade por meio da formação clássica.
Pois bem, qual o problema dessa posição? Ainda que ela seja bastante interessante e importante pra filosofia (parece ser uma forma de oxigenar o campo, trazer novidades), o mensageiro transdisciplinar tende a ser sempre um caso *sui generis*. Não é tão facilmente mensurável.
Não é que ele seja fraco, mas com relação àquilo que é medido na instituição filosófica profissional ele nem sempre consegue estar à altura. Por outro lado, aquilo que ele de fato acaba estudando não costuma ser facilmente comparável com outras pessoas por falta de referência.
Claro que com o tempo vão se solidificando alguns bolsões nas instituições filosóficas que acolhem essas figuras. E neste ponto tem sempre o risco da coisa engessar (pelo menos em termos de transdisciplinaridade) e tomar a mesma rota da historia da filosofia.
Isso não é um problema, mas aí a coisa se configura como uma outra coisa e parece se aproximar mais da própria instituição. De certa forma eu até diria que o valor do filósofo transdisciplinar aparece (indiretamente) na dificuldade de mensurar seu trabalho.
Mas isso tem efeitos terríveis no mercado de trabalho. Afinal, onde eles vão arranjar um emprego? A princípio podemos pensar em duas opções: na área da filosofia ou na área que ele estuda (por exemplo: um departamento de letras ou de física).
Se vivemos em tempos de fartura isso não é um problema. A expansão universitária parece permitir que essas figuras encontrem seu espaço, mesmo que em locais considerados inferiores ou marginais pelos pares do campo.
Mas o que acontece quando esse campo começa a se fechar, quando as vagas começam a sumir? Ou seja, quando chegamos ao momento atual (e que falei no início)? Bem, acredito que a maior mensurabilidade dos historiadores lhes dá uma vantagem.
Excetuando alguns departamentos que tem um corpo docente transdisciplinar mais forte, me parece que a tendência é que os transdisciplinares acabem ficando progressivamente sem espaço nos departamentos de filosofia.
Isso me parece ser algo intensificado no Brasil pelo modelo de acesso aos departamentos de filosofia. Provas em que se precisa conhecer dez pontos dos quais um vai ser sorteado. E os próprios pontos ("a questão do bem", "a questão da liberdade") apontam pra respostas históricas.
Além disso, quem vai avaliar essas provas são professores dos departamentos: o que significa que teremos pessoas que estão acostumadas a produzir, consumir e avaliar historiografia. Isso não é um defeito de caráter, mas apenas uma consequência do campo institucional da filosofia.
A questão é que com cada vez menos oportunidades, será natural que o campo entre num processo de auto-preservação. Por mais que se queiram um campo dinâmico, aberto (e acho justo assumir que todos querem, mesmo que varie o que se quer), não tem espaço para todos.
A auto-preservação é a preservação da possibilidade de reproduzir novos profissionais de filosofia. Neste ponto o professor historiador é privilegiado pois é ele quem é capaz de fazer isso (formando igualmente filósofos historiadores e transdisciplinares).
(Nota: Isso não seria tão terrível se a filosofia estivesse presente na educação básica, já que ao menos poderia-se ter um rumo para a vida profissional dos formados nesse contexto. Mas deixemos esse assunto para outro momento.)
A outra opção também fica comprometida. O problema não é apenas no departamento de filosofia. Ainda que algumas áreas tenham mais recursos, também fica complicado a possibilidade do filósofo se enraizar nesses espaços sem mostrar que ele pode contribuir e muito.
Ou seja, embora seja um caminho possível, ele se torna difícil pela própria natureza da relação que o filósofo transdisciplinar possui com seus campos de interesse. Ele é um visitante constante, mas ainda assim um visitante.
É um pouco nesse ponto que eu fico então pensando na questão que levantei no início. Que tipo de futuro institucional (ou seja, que garanta alguma possibilidade de reproduzir sua vida) existe para a filosofia?
Bem, acho que existe essa via de auto-preservação é o caminho que vem sendo adotado. Em concursos cada vez mais concorridos, é natural que haja cada vez menos chance para aqueles que não produzem de acordo com as principais formas de mensuração no campo.
Apesar de achar isso ruim, não acho que isso deve ser tratado moralmente. Só criaria hostilidades. É preciso aceitar que é natural que se privilegie aquilo que estrutura a disciplina: o aprendizado dos clássicos (ainda que quais clássicos varie muito).
Por outro lado, existe uma espécie de tiro no pé nesse movimento. Pois por mais que seja natural que a instituição queira se preservar, isso acaba também tornando a filosofia ainda mais ilhada do que ela já é por servir apenas aos já filósofos. Pois quais são os outros usos dela?
Não discuti isso como deveria, mas podemos destacar dois (embora certamente devem haver mais). Em primeiro lugar pode-se dizer que ela é uma espécie de linguagem que funciona como um demarcador social. Ou seja, algo que marca distâncias de classe. Um saber de quem tem tempo.
É claro que hoje em dia isso talvez pareça tosco e caricatural, mas acho que não se deve subestimar como isso é algo que sempre existiu na filosofia. Me parece muito otimismo achar que os filósofos romanos não eram contratados por aristocratas para ficarem em na fita.
A questão é que isso é uma justificativa muito frágil. Não pelo fato de não haver mais necessidade desses demarcadores sociais, mas pelo fato de talvez não ser mais a filosofia a executar essa distância. Claro que existe ainda, mas hoje em dia há outros concorrentes na praça.
A outra função, menos frágil, é justamente aquela capacidade de circular entre campos. Em certos momentos históricos isso era um elemento inerente à filosofia. Isso deveria ser melhor elaborado, mas não parece exagero assumir que antes havia mais porosidade.
Como falei, o que acho que restou disso é o esforço (heróico? insano? nesse instante eu diria "insuflado de um ethos walseriano") de produzir comunicações transdisciplinares. Ou seja, o que interessa aos outros de fora da filosofia na filosofia é como ela produz uma circulação.
O problema é que quem faz isso, o perfil profissional que faz isso é o filósofo transdisciplinar (lembrando que estou trabalhando com tendências que trato como pólos mas que se misturam). Justamente ele que tem dificuldade de se localizar no mercado de trabalho presente/futuro.
O que esperar disso? Bem, uma das consequências que imagino é que esse tipo de comunicação acontecerá cada vez menos (talvez substituída por mensageiros que surjam dentro dos próprios campos?) de modo que talvez a própria filosofia vá perdendo sua razão de ser nas universidades.
Um dos mistérios pra mim sempre foi a persistência de departamentos de filosofia ao redor do mundo. Nunca entendi direito seu prestígio (salvo como lembrança de um mundo passado). Mas acho que talvez até isso tenha limite.
Por isso me preocupo com a falta de espaço pra tendência transdisciplinar. Pois quanto menos chance ele tiver de seguir trabalhando ali, menos pessoas tomarão essa direção. Com isso, a filosofia acaba (por razões que fazem sentido) se tornando apenas a tendência historiográfica.
Com isso, porém, acho que ela acabaria se tornando irrelevante para os outros campos. Temo que essa irrelevância acabe sendo o golpe final que acabe com o prestígio que ainda mantém departamentos de filosofia em universidades.
Claro que não sei se as coisas vão acontecer assim. Também é evidente que as coisas são muito mais complicadas do que esse esboço que desenhei aqui. Mas acho que de alguma forma existe um problema na maneira como a filosofia se organiza institucionalmente que é bom abordar.
O que eu espero é que esse pequeno esqueminha deixe ver um pouco dessa crise e que ajude a pensar como responder a isso (embora, pessoalmente, eu não esteja muito otimista).
Lendo seu texto e articulando com algumas ideias com o livro Metodologia do Ensino de Filosofia do Silvio Gallo que tô lendo, me parece que uma das questões centrais pra esse ponto é que não se pensa o ensino de filosofia nas academias em geral (acho que aqui cabe utilizar uma generalização). Você aponta pra essa forte tendência historiográfica e o quão terrível é a falta da filosofia no ensino básico (dois pontos com os quais tenho acordo), mas acho que o próprio ensino da disciplina na educação básica exige uma outra abordagem da filosofia (do pouco que sei sobre o trabalho com crianças e filosofia). Nesse ponto, a própria formação não criaria condições pra expansão do mercado de trabalho, mas o contrário, impossibilitaria. Daí que esse modo engendrado, de certa forma, não só formaria só profissionais, mas também "meros formandos" (aqui, talvez, haja uma ruptura entre formação e profissionalização, já que parece haver uma carência de condições materiais como emprego, por exemplo). Isso também pode tá associado com a escolha de muita gente que opta em colocar a filosofia em segundo plano, que se forma e trabalha em outra área mas faz filosofia como um "hobbie". Uma espécie de "formação pela formação". Também nossas referências aqui, nossos professores, pertencem a uma determinada classe. Muitos tem sobrenomes famosos, vem de famílias de políticos, etc. Aí teria de se investigar as relações de classe com determinada concepção de filosofia. Esse status e prestígio da disciplina também parece tá associado a uma visão da filosofia como "primazia do Ocidente" (cabem aqui, as análises descoloniais). Tenho a sensação de que a filosofia é apresentada como algo muito distante de nós, temporalmente e geograficamente. Como se não fosse possível fazer filosofia aqui e agora (já ouvi isso algumas vezes), o que parece ser relacionar com o cânone historiográfico da disciplina. Por fim, não sei muito o que achar dessa transdisciplinaridade. A ideia me atrai. Acho que esse profissional pode ser subsumido e descaracterizado por outras áreas. São essas minhas impressões.