O filósofo, o ensino e o dinheiro (parte 1)
comentários a partir de uma cena na República de Platão
– Mas veja – disse ele [Trasímaco] – e se eu mostrar que há, acerca da justiça, uma resposta diferente de todas as outras e melhor do que elas, ao que tu te condenas?
– Ao que mais – retruquei [Sócrates] – se não ao que convém ao ignorante? Ora, convém-lhe ser instruído por aquele que sabe; condeno-me, pois, a isso.
– És, de fato, encantador – disse ele; – mas, além do trabalho de aprender, despenderás ainda dinheiro.
– Certamente, quando o tiver – respondi.
– Temo-lo nós – disse Glauco. – Se depender apenas de dinheiro, falta, Trasímaco: todos nós pagaremos por Sócrates.
(…)
– Eis – bradou – a sabedoria de Sócrates: recusar-se a ensinar, instruir-se com os outros e nem sequer lhes agradecer por isso!
– Afirmas com razão – repliquei – que me instruo com os outros, mas pretendes erradamente que não lhes pago gratidão. Com efeito, pago na medida em que posso. Ora, posso apenas elogiar, pois não possuo riquezas.”
Platão, A República, 337d-338b
Desde que a li para preparar uma aula do curso, essa pequena passagem da República tem me incomodado1. Nela se vê, com clareza, uma certa postura do Trasímaco que contribui com sua imagem odiável. Enquanto todos estão ali na amizade, conversando e trocando ideia de boa, o sofista só se dispõe a entrar no jogo de dar e trocar razões mediante um pagamento. A representação desse gesto de Trasímaco não parece um acaso: o sofista é retratado em inúmeros diálogos como aquele que troca seu saber por dinheiro. Há portanto um conteúdo raro (quantos homens sabidos existem?), em tese que vai melhorar o indivíduo (ou até mesmo a cidade), que só é liberado mediante uma equivalência financeira. Por outro lado, quem vai até o sofista, deseja esse saber, deseja descobrir a melhor forma de agir, de se comportar ou de falar. A vida já é bastante difícil para justificar esse desejo. Mas além disso, a promessa do sofista é que seu saber permitirá aos indivíduos que os frequentam se tornarem os melhores entre seus pares. Faz sentido que a educação se torne um bem valioso e que o sofista tenha uma longa fila de clientes para tornarem ele rico.
O problema, como sabemos, é que o dinheiro tende a nos fazer querer atrair mais dinheiro (Marx já avisava no início do Capital sobre essas propriedades magnéticas). Se por um lado o saber é um bem desejado por tudo aquilo que promete (como conduzir sua vida, como governar a si mesmo e os outros), o dinheiro tem também associado a ele um tipo de promessa que configura uma atração difícil de resistir. Por meio dele podemos comprar qualquer coisa (desde que haja quantidade suficiente): bens, propriedades, armas, pessoas. Assim, não é exagero dizer que ter dinheiro também permite (em outro sentido) que a pessoa possa conduzir sua vida melhor (ela certamente vai poder fazer mais escolhas em uma sociedade organizada em torno da troca comercial). Além disso, seu caráter puramente quantitativo tende a nos fazer querer acumular mais e mais.
Essa peculiaridade do dinheiro nos permite olhar de outra forma para a situação do sofista: inicialmente parecia que a rareza de seu bem o tornava senhor daquela interação, mas parece que assim que o dinheiro entra em cena (ou seja, no início dessa interação), os pólos se invertem. Aquele que possui dinheiro se torna o senhor daquele que tem uma mercadoria a vender. O sofista, como mercador do saber, não é portanto um simples proprietário. Ele precisa que alguém queira comprar o que tem pra vender. Uma consequência disso é que não lhe basta simplesmente expô-lo, é-se obrigado a tornar seu produto ainda mais atraente, deve-se tentar fazer com que os donos do dinheiro queiram gastá-lo no saber que o sofista oferece. É por isso que não é raro ver nos diálogos (como no Eutidemo, no Hípias Maior, no Górgias, no Protágoras, etc) uma enumeração das vantagens do saber sofístico: será possível convencer qualquer pessoa de sua superioridade. Será possível dominar qualquer discussão. Será possível, em suma, controlar as pessoas.
Dá pra ver que as coisas se tornam complicadas quando pensamos que seu objeto não é um simples serviço ou um objeto. O que ele tem a vender é um saber, o saber de viver corretamente. Isso não seria a coisa mais valiosa? O verdadeiro bom? Diante dessa necessidade de conseguir realizar a venda do seu produto, entra-se numa zona perigosa e uma questão se põe: tornar esse produto mais atraente (“você será capaz de dominar os outros humanos!”) não acaba também afetando o próprio saber que é vendido? Se há um saber verdadeiro, não deveria ser ele valoroso independente das condições? É essa uma das lições que vemos repetidamente em uma série de diálogos em que Platão encena o confronto de Sócrates com sofistas. Assim, se o sofista entra nesse jogo de trocas, como dizer que o que ele tem a dizer não é de alguma forma deturpado de partida pelo seu desejo de conseguir vender seu saber, de conseguir alunos que o paguem?
Por outro lado, há algo a seu favor nessa operação: na medida em que sua mercadoria é direcionada para aqueles que tem recurso (que poderão pagar por ele), quem compra seu produto já é a pessoa que tem poder, aquela que tem dinheiro. Tendo dinheiro, já é provável que o indivíduo tenha uma capacidade superior de influenciar a política local. No fim das contas, o que esses indivíduos compram é a chance de justificarem sua influência sem precisar apontar para o dinheiro que possuem. De certa forma encontramos nessa operação uma profecia auto-realizável: o sofista vende uma promessa de poder por meio da sabedoria, mas aqueles que compram são os que já tem algum poder. Percebe-se que o sofista não é o grande vilão desse sistema, mas ele se presta a tomar parte nessa reprodução do poder para conseguir reproduzir a si mesmo. O resíduo dessa operação é uma desconfiança sobre o saber que o sofista tem a oferecer. Não conseguimos ter certeza do quanto ele precisou abrir mão para tornar suas ideias mais atraentes para seus clientes. A única garantia que temos é que aquilo aparenta ser um saber.
E Sócrates? Sabemos como ele se recusa a entrar nesse jogo (foi morto por isso!). Ele mesmo falou na situação acima que está disposto a aprender (além dos elogios). Afinal, ele sabe que nada sabe, então se há alguém livre para aceitar seus limites e não se sentir inferiorizado por essa operação é ele. Mas mesmo quando ele está na posição de ensinar, sua resposta não está muito distante. Se ele não cobra nada, é por não ver que há qualquer coisa nesse mundo que pode ser um equivalente. De fato o que ele tem a oferecer é sua ignorância, o fato de que não sabe nada. Mas é justamente a sabedoria disso que tornará seu saber tão precioso.
É recorrente nos diálogos a ideia que para Sócrates o saber filosófico mais que qualquer bem (mais que o dinheiro, a honra e a beleza). Famosamente, em O Banquete Sócrates se recusa a trocar a chance de usar a beleza de Alcibíades (seu corpo) pelo uso que Alcibíades poderia fazer de sua beleza (sua sabedoria). Não é uma troca que faz sentido, seria como trocar uma falsa beleza (do corpo, que decai) por uma verdadeira beleza (da sabedoria, eternamente duradoura):
Caro Alcibíades, é bem provável que não sejas um vulgar, se chega a ser verdade o que dizes a meu respeito, e se há em mim algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti. Se então, ao contemplá-la, tentas compartilhá-la comigo e trocar beleza por beleza, não é em pouco que pensas me levar vantagens, mas ao contrário, em lugar da aparência, é a realidade do que é belo que tentas adquirir, e realmente é ‘ouro por cobre’ que pensas trocar.
Platão, O Banquete, 218d-e
O filósofo tem um saber a compartilhar (o saber de sua ignorância), mas este não poderia ser posto como equivalente à qualquer coisa. É por isso que Sócrates se recusará receber dinheiro pela sua atividade. Ele não poderia subordinar ser subordinado à lógica das trocas mercantis. Também não poderia ser submetida à lógica de trocas autoritárias (como a encrenca descrita na Carta VII de Platão com Dioníso II em Siracusa nos faz ver) ou às trocas de honra (como é o caso dos poetas, que não raro acabam subordinando sua arte a um desejo de seduzir seus ouvintes).2 Se Sócrates não cobra, ele também não espera os outros pedirem: o filósofo está sempre importunando quem aparece em sua frente (e como de se esperar: alguns amavam isso, outros odiavam). Dito isso, de alguma forma ele está sempre na posição do amante lacaniano: oferecendo aquilo que não se tem a quem não quer. Assim, é ao negar realizar certas trocas fundamentais para a reprodução da cidade, que a filosofia aparece como uma atividade que se singulariza e que de alguma forma promete uma outra forma de conduzir a vida3.
Há uma razão muito forte para isso: a filosofia não deve se submeter a nada salvo o encadeamento que os problemas demandam. Assim, a beleza da filosofia, sua maneira de nos levar a pensar coisas que jamais pensaríamos imediatamente, se deve a ela não ser constrangida por nenhum interesse pessoal. Vê-se, a partir de Sócrates como há uma certa liberdade (que é antes uma espécie de negar certas dependências sociais) que permite ela ser dependente dos encadeamentos do próprio pensamento. Filosofar seria, portanto, estar livre para tirar as consequências daquilo que se é capaz de pensar sem que essas consequências sejam subordinadas à interesses externos ao que se pensa.
No momento em que se passa a receber pelo ensino da filosofia, essa liberdade estaria em risco. O encadeamento das ideias talvez acabasse se conectando a outras coisas, à necessidade de agradar um cliente, de não dizer algo que pode irritar os interlocutores e assim por diante. Esse risco não é pequeno, afinal, Sócrates foi assassinado pelo Estado por não desejar ceder sobre a forma como conduzir suas reflexões. Pode-se dizer então que se a filosofia realiza alguma troca, trata-se de um intercâmbio em que alguém abre mão de suas opiniões para receber em retorno um confronto com os limites de sua própria ignorância. Do outro lado da operação, Sócrates, como figura intermediadora, também não ganha nada4. As próprias opiniões que ele escuta são avaliadas, criticadas e se mostram contraditórias e insuficientes. Por outro lado, o que ele oferece é apenas o saber negativo de sua ignorância. Não é à toa que no Mênon Platão vá descrever essa operação como entorpecedora:
Mênon: E se também é permitida uma pequena troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder, tanto pelo aspecto como pelo mais, à raia elétrica, aquele peixe marinho achatado. Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca, quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois verdadeiramente eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na boca, e não sei o que te responder. (…)
Sócrates: (…) Quanto a mim, se a raia elétrica, ficando ela mesma entorpecida, é assim que faz também os outros entorpecer-se, eu me assemelho a ela; se não, não. Pois não é sem cair em aporia eu próprio que faço cair em aporia os outros.
(Platão, Mênon, 80a-c)
Essa momento aporético que Sócrates produz como resultado da troca que ele propõe talvez tenha sido melhor sintetizada por uma máxima de uma filósofa nacional: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” Mas ao menos, sabe-se que ninguém sairá melhor, e não é isso ao menos uma vantagem? O saber que Sócrates tem a oferecer é negativo, mas ao menos podemos nos assegurar que há uma verdade nesse processo angustiante.
Essa forma como Sócrates se relaciona com as trocas que existem na cidade, dá pra ver, é bela e moral. Ela nos permite ver um pouco o valor da filosofia, pela sua recusa em se subordinar a um status quo. Ao evitar certas trocas (que se revelam como âncoras) o filósofo consegue evitar se constranger por demandas externas ao pensamento que o obrigariam aterrar seus pensamentos em opiniões cujo maior valor é serem hegemônicas ou consensuais5.
O sofista, por sua vez, por mais que seja capaz de pensar, e refletir, é ele mesmo envolvido em comprometimentos complicados que dificultam levar seu pensamento até às últimas consequências. Há sempre uma preocupação com a possiblidade de ofender quem o escuta, ou causar algum incômodo que ponha seus recursos em xeque. Ele certamente não tem a liberdade de dizer tudo o que pode pois há determinadas consequências de suas palavras que ameaçariam seu ganha pão.
O que surge dessa imagem da filosofia, porém, é algo complicado para nós que não somos Sócrates. Como ter certeza que o nosso discurso é firme? Que nossas reflexões vão seguir um curso livre? Somente se estamos livres de certas demandas financeiras ou se não estamos querendo agradar quem quer que seja (até nós mesmos) é que poderemos estar certos da nossa firmeza. Isso já é difícil fazer em um vácuo, mas imagina fazer isso no mundo real? A situação se complica em uma sociedade assalariada em que todos (quase todos) precisam vender sua força de trabalha para sobreviver. Isso sem contar os comprometimentos que não vemos. Desse ponto de vista, torna-se quase possível imaginar que talvez Trasímaco não tivesse opção. Ignorando aqui a precisão histórica: suponhamos que Trasímaco, como estrangeiro, não tivesse sua vida garantida como um cidadão ateniense e que ele precisasse trabalhar, vender seu ensino, para sobreviver. Neste caso, seria possível culpá-lo por se compremeter dessa forma?
E Sócrates? Como se vê no trecho inicial: há gente para bancar Sócrates (Glauco, Adimanto, Polemarco, todos os que estão ali?). Na Apologia os seus amigos também oferecem pagar uma multa que o livraria da condenação. Por fim, o mesmo acontece no Críton, quando um amigo suborna um guarda para que Sócrates possa escapar e sugere que ele poderia ser bancado no estrangeiro. Sócrates de fato se mostra como alguém inflexível, alguém que não cederá seu pensamento para qualquer encadeamento que esteja fora de sua elaboração filosófica. O que vemos, porém, é que sua capacidade de pensar de maneira consequente (de não se deixar contaminar por demandas externas), depende das redes de proteção em seu entorno (tanto o auxílio dos amigos, como os benefícios de ser um cidadão ateniense naquela cidade) que nem sempre aparecem diretamente em seu discurso. A sua capacidade de ser verdadeiro, de não se ceder aos desejos de seus interlocutores, estaria condicionado por uma dependência velada que ele tem de um grupo de amigos que o permite viver como se fosse livre.
Nessa hora, porém, cabe perguntar: quem estaria pensando de maneira mais consequente? Aquele que tem um apoio que o permite ignorar toda a rede que o permite pensar? Ou aquele que de alguma forma está o tempo inteiro tendo a firmeza de suas ideias testadas pela maneira como aquilo que ele pensa ou diz pode agradar ou desagradar uma fonte de sustento? Com todos os defeitos que se pode atribuir ao Trasímaco (e certamente estou proletarizando um pouco sua figura aqui, para coisas que falarei em outro momento), a impressão é que o mercador de saber está de alguma forma mais sensível para a maneira como o tecido social se organiza e acaba constrangendo aquilo que pode ser ou não pensado.6 Não me parece um exagero dizer que a vergonha que o Trasímaco traz para jogo tem também (mas não só, evidentemente) a ver com o fato de que nós (nós hoje, não para os atenienses) também precisamos lidar com esse tipo de compromisso que nos impede de adotar a postura de Sócrates. Isso não precisa, porém, ser encarado de modo trágico, como um sinal de que a filosofia não serve para nós (ou servirá apenas para uma meia-dúzia de herdeiros). Podemos apostar, como diz Franco Fortini, que “não há vida verdadeira, senão na falsa”.
(continua)
Importante notar que nenhuma dessas reflexões seria possível sem as trocas com Bruno Oliveira e nosso trabalho entorno de Platão.
Boa parte do que é dito sobre a filosofia como um tipo de discurso que se contrapõem a esses intercâmbios é retirado a partir do brilhante Genres in Plato de Andrea Nightingale e intermediado pelo raio karatanizador (The Structure of World History). Está nos meus planos conseguir sistematizar essas ideias em algum momento.
A natureza dessa forma específica ainda precisa ser mais determinada, mas a princípio apenas repetiria a máxima de Germano Nogueira: “a forma de vida que quer viver da forma” (Entre política e ontologia: o bom na República de Platão, p. 32)
Seria a filosofia uma “gimmick” (cf. Ngai, Theory of the gimmick)?
Essa atitude não será exclusiva de Sócrates. Basta lembrar a recusa de Espinosa em aceitar a cátedra de Heidelberg por medo de perder sua liberdade de pensamento.
Impossível não conectar isso com a sua contribuição ao debate no livro I sobre a natureza da justiça. Dizer que a justiça é a vantagem do mais forte é lembrar os interlocutores que não há nenhuma regra ou medida a priori que determine a ordem social. A ordem que se estabelece é sempre a consequência de um confronto entre perspectivas. Se seu pensamento demonstra limites, é por defender que essas perspectivas são totalmente subordinadas a interesses pessoais (mas essas questões, podem ser deixadas para outro momento).