As margens e o ditado (2021), Elena Ferrante, traduzido por Marcello Lino, editado pela Intrínseca (2023)
É difícil escrever1 sobre um livro quando durante a leitura já se sente sua força demolidora. Um livro que já na primeira leitura diz: você vai voltar. Um livro que te deixa com vontade de se mexer, de agitar, de parar de ler para começar a escrever (mas você não consegue fazer isso, pois não consegue também parar de ler). Não sei como esse livro vai se comparar aos livros que ainda vou ler esse ano (deus sabe que sou um otimista), mas posso dizer que é uma das coisas mais incríveis que já li, tanto sobre o fazer literário (sua “poética”) como sobre a literatura em geral.
O livro tem uma estrutra bem simples: três conferências sobre seu fazer literário e uma última sobre Dante. As três primeiras, por sua vez podem ser divididas em três temas (que no entanto retornam, se enlaçam, e se mostram inseparáveis): 1) a escrita burocrática (“boa”) e disciplinada x a escrita meteórica e desviante; 2) o impulso realista e as soluções ficcionais e procedimentais e 3) a relação entre a escrita atual e os empréstimos (inevitáveis) de literaturas passadas. Os três temas são tratados de maneira bem concreta: reflexões bem precisas (não abstraindo para além da necessidade) e referenciadas nos próprios textos da autora. O último capítulo (como uma visita aos bagni misteriosi milaneses) apresenta a obra de Dante como uma espécie de consumação da poética ferrantiana.
Eu não poderia recomendar mais a leitura desse livro. Sobretudo para os leitores de Ferrante (para os não leitores, acho que não resta muito salvo recomendar que redimam seus pecados com uma leitura da Tetralogia Napolitana). Vou ser incapaz de fazer qualquer comentário articulado sobre livro (apesar de ter dormido, ainda estou sob efeito do seu impacto, que gostaria de ao menos tentar registrar para futuros retornos a esse livrinho).
Em primeiro lugar acho que o mais óbvio é marcar, como elaborado na primeira conferência, a oposição entre a escrita disciplinada e a escrita desviante. Enquanto a segunda talvez seja aquela que nos fornece os meios de produzir aquele tipo de experiência estética que nos desloca, que nos move, o que me interessa em Ferrante é a forma como ela defende que somente uma escrita disciplinada e paciente pode dar ocasião ao arroubo meteórico da escrita desviante. A escrita disciplinada, com seu apego à formas tradicionais (ou gêneros consagrados, fórmulas e procedimentos estabelecidos, como Ferrante não tem pudor em admitir, acaba sendo a base que constitui o edifício literário. E ainda que ela sozinha não seja capaz de produzir algo que nos deixe inflamados, é somente a partir dela que podemos ter uma constância que pode ser desviada, dispersada, atrapalhada. E não se trata apenas de uma incapacidade de aguentar essa força (como se o problema fosse simplesmente a nossa finitude). O interessante em Ferrante (e que fica claro com os exemplos que ela dá de seus próprios livros) é a maneira como essa escrita meteórica jamais seria capaz de se impor sem que houvesse de alguma forma esse fluido firme e constante de escrita disciplinada que se permite ser deturpada.
Esse ponto me parece se conectar imediatamente com o desejo de realismo na Ferrante. Pois se ela quer escrever, isso estaria ligado de alguma forma a um desejo de reprisar as coisas, reapresentá-las ou, como vemos nos seus comentários sobre as suas primeiras tentativas de escrever, uma tentativa de capturar uma experiência verdadeira. O que a guiava (e continuou guiando) era um imperativo presente em Jacques, o fatalista, e seu amo de Diderot: “diga a coisa como ela é”. Como era de se esperar, a jovem Ferrante não conseguia dar conta da realidade por meio da linguagem, ainda que persistisse esse desejo. Falo aqui nos meus termos, mas gosto de imaginar que o que ela buscava já ali pôr em palavras era um certo traço singular que experimentamos em nossas vivências (das mais intensas às mais triviais) e que de alguma forma nos lembra (mas precisaríamos ser lembrados?) que aquilo que vivemos é absolutamente real (e não apenas é real, como é objeto de transmissão, de partilha, de troca). Mas o que é isso? É esquisito. Algumas pessoas (Barthes, Joyce), chamaram isso de em epifania e de fato me parece que tem algo disso. Uma espécie de experiência que não sentimos em todo momento (acho que seríamos sufocados?) mas que de alguma forma quando aparece nos reafirma a simples alegria do viver (a singularidade dessa experiência, singularidade que, sendo partilhada, é o que também nos aproxima dos outros, que também participam desse tipo de experiência singular).
Em minha própria pós-adolescência (em uma idade parecida com a de Ferrante), lembro de ser tomado de uma obsessão similar (embora até aquele momento incapaz sequer de dar passos iniciais) em que tudo que queria era escrever as coisas tal como elas são. Lembro de repetir para mim mesmo (sem falar com ninguém, afinal, uma maluquice) que queria escrever algo em que nada acontecesse, um livro sobre o nada, mas que só poderia aparecer por meio da narração de uma vida qualquer. Mas como escrever isso? Como escrever e capturar esse “nada” que ao mesmo tempo parece a coisa mais impossível de reproduzir, por ser justamente aquele elemento nas coisas que dá sinal de sua verdade, de sua experiência verdadeira? Nunca entendi essa obsessão até bem recentemente (ou melhor: continuo sem entendê-la, mas agora acho que entendo o que buscava), mas consigo enxergar em Ferrante um desejo assim: há algo que se quer pôr na escrita, há inclusive uma forma de fazê-lo, mas ela mesma se via como incapaz de fazer isso. Seria possível (até provável) dizer que o que aqui estava em jogo era justamente a escrita disciplinada (que quer apenas escrever, conseguir concatenar de modo contínuo, estabelecer um contorno por meio de encadeamentos de narrações e descrições). Se fosse esse o caso, porém, o que teria impedido Ferrante? O apelo que ela faz na conferência ao contexto completo em que a citação de Diderot me indica que a escrita que ela busca inicialmente é já aquela que depois será identificada como a desviante. O contorno do imperativo “diga a coisa como ela é” aponta justamente para a dificuldade e impossibilidade de fazer-se isso diretamente devido à singularidade das coisas e das perspectivas. O caminho que se abre aí é o de uma escrita treinada, disciplinada, estudada nos gêneros e nas formas tradicionais de narrativa (o romance policial, as “cenas de casamento”, o terror). Ferrante consegue avançar em sua escrita ao entender que o realismo que ela buscava (e que não nego que seja também o que eu busco) precisa de andaimes que o sustente. A realidade não apareceria, portanto, por um contato imediato (que nos permitiria restituir a realidade em si mesma por um esforço puramente descritivo — mas para que?). Ao se aproximar das formas tradicionais da literatura, é como ela buscasse produzir no âmbito da linguagem narrativa a trivialidade habitual (e muitas vezes invisível) que organiza boa parte de nossas vidas. Não vivemos o tempo inteiro de epifania em epifania. Talvez fosse possível dizer que os momentos epifânicos, o traço singular que comentei, só pudesse surgir a partir dessas estruturas (necessárias para tornar o mundo navegável, inteligível, compreensível). Assim, ao conseguir encontrar um caminho para sua escrita disciplinada, por meio de apelo à formas tradicionais, Ferrante também acaba criando o espaço a partir do qual algo de singular pode aparecer. Isso, segundo a autora, seria a fórmula de seus três romances iniciais (Um amor incômodo, Dias de abandono e A filha perdida): uma mulher inserida em um gênero literário que ao longo da novela vai extrapolando (por capricho?) os limites prescritos daquele gênero. A singularidade de suas obras, a sua verdade, apareceria portanto nesse “ir além” dos limites do gênero.
Na Tetralogia, como qualquer pessoa que a leu, algo de diferente acontece. E como Ferrante reconstitui, isso dá mais um pedacinho fundamental para entendermos a sua poética. Se nas três novelas que publicou inicialmente se tratava desse confronto entre um gênero e uma mulher, na Tetralogia (impulsionada por algumas leituras pontuais, que não terei condição de comentar aqui sem me estender mais do que já estou fazendo), adiciona-se um “outro necessário”. Não se trata mais da história de uma mulher solitária (como a Ferrante admite, suas personagens centrais são sempre insulares). Influenciada pela leitura e atenção ao procedimento de A autobiografia de Alice B. Toklas e da história de duas amigas (Amalia e Emilia) operárias recolhidas em Non credere di avere dei diritti, Ferrante constrói uma história em que a vida verdadeira passa necessariamente pelo contar do outro. Não apenas se narra a vida do outro, como se assume a posição desse outro para se narrar (também) a própria vida. Esse deslocamento de perspectivas steiniano não deixa de me lembrar a culminação do diálogo Alcibiades I de Platão: o conhecimento de si (fundamental para a vida virtuosa) só pode ser alcançado por meio do diálogo com o outro: ocasião privilegiada em que a alma do outro se manifesta e se manifesta de maneira a refletir a nossa e, nesse procedimento, tornar possível que vejamos a nós mesmos (da mesma forma que veríamos os nossos olhos por meio dos olhos de um outro). A Tetralogia, na oposição constante entre Lila e Lenu, na maneira como a própria Lenu aparece tanto pelo que fala de si como pela maneira como a Lila que ela narra vê ela própria, acaba construindo um todo em que é difícil de separar (ontologicamente) as duas amigas sem que sejamos privado da capacidade (epistêmica) de diferenciá-las, de pontuar suas aproximações e distinções2.
Como a autora já diz, dá para dizer muito sobre como as duas personagens acabam encarnando em termos narrativos as oposições que a própria encontra em seu trabalho de escrita (entre a escrita disciplinada e a escrita desviante). Mas acho que gostaria de destacar aqui é a maneira como essa duplicidade (esse jogo de reflexões em que nos vemos a partir do olhar do outro que acreditamos que vemos com os nossos olhos) está longe de nos encerrar em um labirinto de espelhos em que ficamos presos em nosso narcisismo. Trata-se do próprio espaço em que podemos encontrar uma forma de reproduzir na escrita o traço singular das experiências verdadeiras. Essa jogo de espelhos acaba repetindo (reprisando) a própria relação do escritor com a tradição literária. Um escritor, sobretudo aquele que escreve num momento em que tudo que foi escrito parece estar disponível (intensificando a sensação de exaustão), precisa sempre lidar com tudo aquilo que já foi dito (e que talvez quando dito, era sincero, verdadeiro, mas que quando repetido só pode soar como falso). Nesse ponto encontramos um limite: como escrever algo se tudo o que nos aparece é sempre falso, soa sempre falso? Retornamos ao mesmo problema do realismo, mas dessa vez pelo lado da literatura. O uso das formas antigas não pode nos garantir nada salvo que talvez consigamos escrever uma literatura competente. Parece um beco sem saída, já que se antes não conseguíamos reproduzir o traço singular que nos remete à vida verdadeira, agora também não conseguimos reproduzir o traço singular que faz com que identifiquemos um texto literário como grandioso (isto é: como algo que nos move, nos incita, nos agita, nos põe em movimento — como o amor que é soprado no ouvido de Dante, faz sentir “grande vontade de dizer versos” e “a minha língua [de Dante, mas a nossa também] pôs-se então a falar como se movida por si mesma.”3).
Não há saída simples para isso. Esse me parece justamente o trunfo de seu elogio ao literário (e à sua mediocridade). Na terceira conferência Ferrante cita inúmeras passagens de uma aula da poeta Ingeborg Bachmann que nos fariam acreditar a princípio que a literatura é uma atividade (em sua execução mais virtuosa) que os competentes até podem realizar, mas que apenas aqueles que alcançam “a direção, a manifestação coerente dos mesmos problemas, um universo único e irrepetível de palavras, figuras e conflitos podem nos induzir a reconhecer um poeta como imprescindível.” Sob esse ponto de vista a literatura pareceria algo que apenas alguns tem a sorte de ter a capacidade de realizar. Mas isso é estranho, pois a própria Ferrante passa o livro inteiro não apenas comentando, como também demonstrando sua filosofia da composição como uma resposta a uma suposta falta de talento. Se este é o caso, qual sentido desse texto? E porque ele me deixa com vontade de escrever, de justamente tentar entrar nessa via impossível que ele delimitaria?
Acho que o golpe de mestre de Ferrante se dá em um ato sutil que termina por mostrar que a distância entre aquele que escreve de maneira competente e o gênio é menor do que parece. Inicialmente ela parece apenas estar reproduzindo a distância descrita pela poeta citada:
Como Bachmann, penso que é justo marcar a diferença entre uma bela poesia, um bom conto, um romance agradável e inteligente de uma pessoa comum e a obra de um autor ou uma autora imprescindível. É uma diferença fundamental para o destino da literatura. (p. 86)
Em seguida, porém, salta aos olhos da autora uma semelhança que parece abalar essa distância:
No entanto, primeiro tendo a imaginar que a pessoa comum e a fora do comum partem do mesmo terreno: a escrita literária com suas catedrais, suas paróquias no campo, seus tabernáculos nos becos escuros; e segundo, que o acaso — a mão que afunda no balde e extrai palavras — tem o mesmo papel ao pôr em movimento tanto obras menores quanto grandes obras. As frases verdadeiras, boas ou excepcionais sempre buscam seu caminho entre frases feitas. E as frases feitas foram em algum momento frases verdadeiras que abriram caminho dentro de frases feitas. Nessa corrente de obras menores e grandes obras, em cada elo grande ou pequeno, há o trabalho árduo, iluminações casuais, esforço e sorte. O caminho de Damasco não é uma estrada bem sinalizada que leva a iluminações. É um caminho como qualquer outro no qual, por acaso, enquanto damos duro e suamos, podemos vir a perceber que há outra trilha possível. (p. 86-87)
Ao enfatizar que o escritor competente e o escritor genial começam do mesmo ponto e que seu caminho é o mesmo, me parece que o mito do gênio é revirado e invertido, de história da distância, transforma-se em uma ligeira sugestão de como é possível passar de um ponto ao outro (assim como os gêneros são abalados no meio do caminho em sua narrativa pela intrusão da escrita desviante). Não se trata de um dom, mas de um esforço comum (um percurso pela escrita disciplinada, de modo paciente) que em alguma distração pode esbarrar em frases verdadeiras. Mas como fazer isso? A chave está justamente no começo comum para as obras menores e grandiosas: as frases feitas que devem ser atravessadas para dar espaço às frases verdadeiras.
Acho que é nesse ponto que o jogo de espelhos aparece na relação do escritor com a literatura. O impulso pela escrita, é importante enfatizar, não é algo que surge do nada. Sabe-se lá como o primeiro conjunto de textos foi se estabelecendo, mas acho difícil dizer que qualquer texto que reconhecemos como literatura não seja de alguma forma já algo que de alguma forma uma tentativa de repetir, reproduzir ou reprisar alguma forma textual anterior (mesmo que não se trate do texto escrito, que seja proveniente da oralidade). Assim, mesmo que excluíssimos esses exemplos primeiros (as Odisseias, as Gilgámesh da vida), o que vem depois parece ter sido sempre informado também pelo desejo de imitar o gesto da escrita que o precede. A literatura parte, como defende Ferrante, desse espaço de frases feitas que algum dia foram verdadeiras. De maneira mais corriqueira podemos dizer que começamos a escrever também a partir dos livros que amamos (como Ferrante e seu amor por Dante, mas também por Morante, por Ginzburg).
O medo, porém, é que aquelas frases que algum dia foram verdadeiras, já não o sejam mais quando repetidas pela nossa voz. Isso é ainda mais grave, como aponta Ferrante, quando se pensa na situação da mulher, em que há menos precedentes ainda (e quando eles existem não deixam de ser marginalizados, minorizados etc). Como é, então, que a escrita verdadeira consegue se impor (ainda que momentaneamente, ocasionalmente, ao casualmente)? A chave (e que me parece reafirmar seu contínuo elogio do escritor comum e sua aspiração à grande literatura) está justamente nas liberdade que alguém se dá com aqueles mesmos textos que ama. Ferrante dirá que “escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna. Não devemos nos deixar lisonjear por quem diz: ela tem um tom próprio. Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si.” (p. 82) Esse trecho me parece fundamental no livro, pois é a partir dele que podemos entender de maneira clara o gesto de Ferrante e que ela comenta ao longo de todo o livro, dando detalhes de como roubou aqui e acolá algumas coisas, fazendo ligeiras torções que, aliadas ao seu trabalho duro e contínuo, constituem suas obras. A verdade da experiência é alcançada quando se começa a se inventar e ficcionalizar sobre aquilo que se entende como real (e sobre as frases feitas repetidas). Temos aqui uma tese um tanto trivial (não será a primeira a sugerit que a verdade tem uma estrutura de ficção), mas que ganha força mais pela maneira como Ferrante encadeia exemplos seus e de outros autores. ficcionalização. Nesse gesto, longe de admirar e elogiar uma escrita imediatamente singular, Ferrante retoma o imperativo (contextualizado) de Diderot: descrever cada coisa como ela é, mas sem cair na armadilha de supor que isso se faz por uma linha reta. E que forma melhor de fazer isso se não se reaproveitando desse “tesouro” acumulado que é a tradição literária? Assim, o espaço de elaboração da escrita, para Ferrante, mas não consigo discordar, partirá sempre de um gesto literário anterior; o que a distingue é a maneira como nos sentimos a vontade para esticá-lo, alterá-lo, inverte-lo, algumas vezes até copiá-lo abertamente. Ficcionaliza-se em dois níveis: a partir da experiência verdadeira que se quer capturar e dos textos e formas clássicas que tomamos de empréstimo.
Aqui, porém, uma distinção, que me parece marcar a força de Ferrante. Esse “o que a distingue” não é simplesmente o que distingue a literatura menor da maior. Trata-se antes da literatura verdadeira (e há muitas, tantas quantas são os traços singulares que compõem as inúmeras vidas), que busca sua força por meio da construção de procedimentos triviais e habituais que vão dar espaço para uma posterior singularização por meio de um processo de desestabilização interno àquela construção. Não há aqui uma ilusão de um contato direto na escrita, mas uma conscientização de que “dizer as coisas como elas são” depende sempre de uma reprise do mesmo tipo de movimento que compõem as singularidades que encontramos em nossas próprias vidas. Ainda que isso seja sempre difícil explicar (difícil entender, mas difícil também pôr no papel), suspeito que o que esteja em jogo aqui seja aquele jogo que fazemos com nós mesmos (e os outros que compõem nossa vida) em que buscamos equilibrar o desejo de tranquilidade, segurança, proteção com o desejo de perseguir algum elemento amoroso que mal sabemos explicar salvo quando nos remetemos à forma como ele desviou nossa vida. Gosto de acreditar que o que está incluído nesse gesto (e talvez seja um moral na literatura) é sempre um desejo de “corrigir”. Se por um lado podemos dizer que uma escrita ficcional é uma mentira esticada, por outro lado, aristotelicamente, trata-se também de algo que é esticado a partir de um critério de correção, de como as coisas devem ser. Mas, como acredito, esse dever-ser não é simplesmente o compasso moral de um indivíduo: o que "quer ser" é uma possibilidade de outra vida, que consegue ganhar pernas quando acabamos nos permitindo experimentar (retirando, adicionando, brincando) com as premissas que dão forma às nossas vidas. Seria portanto por meio dessa liberdade de gastar a fortuna literária que conseguiríamos ter essa experiência sensível de como outras vidas são possíveis.
Sobre esse último ponto, uma coisa que gostaria de enfatizar é que essas vidas possíveis não são apenas vidas abstratas (algo que inclusive Ferrante também marca ao descrever a Beatriz de Dante). Se a literatura é também esse espaço de reprodução da experiência verdadeira por meio de sua ficcionalização, então a ausência da vidas das mulheres, negadas ou apagadas, ignoradas ou esquecidas, mas raramente presentes nesse “tesouro” literário, apresenta uma dificuldade a mais para as mulheres (mas não apenas, podemos dizer para qualquer grupo que se encontre fora da hegemonia). Essa dificuldade é visível tanto na rara presença das mulheres em textos (ou sua presença calada, sem fala, apagada) como na marginalização de escritoras mulheres. Como os esforços de construção de grande ou pequenas obras parte em parte das frases feitas, das formas anteriores emprestadas, consciente ou não, implícita ou explicitamente, as mulheres, excluídas historicamente desse processo, acabam tendo menos pontos para se conectar com essa tradição. Isso não significa que disso as mulheres escreveriam obras menores, mas que elas teriam uma tradição de recursos para ficcionalizar que cobriria um campo menor, que nem todas as suas questões e experiências teriam sido tratadas ao longo da história da escrita. Assim, aquilo que elas teriam para esticar, os problemas elaborados e constituídos em textos precedentes, não as contemplaria totalmente ou necessariamente.
Como disse Bachmann, citada por Ferrante, a grande obra se constrói a partir de uma “manifestação coerente dos mesmos problemas”. Dessa forma, a capacidade de construir esse espaço de tratamentos consistentes é auxiliado (e também é capaz de crescer, ganhar formas mais novas, mais interessantes) pela disposição de uma tradição que basta gastar. A exclusão histórica das mulheres de inúmeras atividades resulta, portanto, numa grande zona não tratada da experiência no campo da literatura escrita que não pode ser tão facilmente remanejada como no caso das experiências que foram acumuladas na tradição. É por essa razão (ou uma das), que acredito que Ferrante tem tanto apreço pela Beatriz da Divina Comédia. No lugar de tomar essa figura como uma abstração ou idealização, Ferrante prefere enxergar no tratamento que a amada recebe na obra de Dante como um vislumbre para a vida das mulheres contemporâneas de Dante. As vidas possíveis, portanto, acabam tendo a oportunidade de aparecer, de se tornarem elas também um tesouro que se pode gastar na construção de outras obras literárias.
Há aqui um outro elemento interessante que vale destacar. Pois ainda que Dante seja alguém que para Ferrante consiga deixar aparecer outras vidas em sua obra, nem por isso a questão se dá por finalizada. Trata-se da exceção que prova a regra em uma tradição hegemonicamente masculina. O gesto de Dante é uma espécie de limite que na mesma medida em que deve ser apreciado, pode, também, ele próprio ser ampliado e reaproveitado. Pois se a Beatriz que aparece para Dante põe em frases uma experiência que antes não tinha lugar no espaço literário4, ele está longe de antever e esgotar o que se pode ainda narrar. Assim, a ausência histórica de uma certa tradição impõe um novo problema: como criar esse espaço (sobretudo sem reduzir as escritoras mulheres a uma escrita que esteja condenada a ser apenas um de seus predicados)? O caminho proposto por Ferrante, em certa medida, está presente em toda a sua obra como também ao longo de todo esse livrinho.
Essas ausências nos permitem entender uma das missões que Ferrante se dá, sobretudo na Tetralogia. Essa missão é explicada após uma menção a um poema de Emily Dickinson no início da terceira conferência:
Na História, as bruxas foram enforcadas
porém eu e a História
temos toda a bruxaria de que precisamos
todo dia entre nós
Confesso que esse poema é para mim, como não deixam de ser muitos poemas de Dickinson, enigmático. Por um lado um é claro no primeiro verso que se trata de uma menção ao fato de que a bruxaria (essa forma de vilipendiar as práticas das mulheres) foi continuamente perseguida na história apagada. Nos versos seguintes, porém, o que parece se contrapor é a persistência da bruxaria mesmo diante disso. Neste caso a história deixaria de ser o acúmulo de crimes, e se tornaria uma fonte inexpurgável (“todo dia entre nós”) que jamais pode ser completamente destruída e que é o suficiente para que essa arte continue a se reproduzir.
A partir desse poema, pode-se dizer que Ferrante conclui que a escassez só pode ser combatida com um apelo às bruxarias do aqui e agora que nunca pararam de acontecer. Na prática, isso significa inscrever na tradição literária (por meio de seus recursos) inúmeras vidas de mulheres que até pouco tempo não tinham lugar nessa história (e quando tinham não deixava de ser insuficiente, seja pela quantidade, seja pela maneira como a figura da mulher era reduzida ou hiper-idealizada).
Esse gesto, não se restringe, porém, a uma simples representação das figuras femininas (e como poderia ser, depois de tudo que ela pensa e faz em suas obras?). Ao atentar para o “outro necessário” que mobiliza suas obras mais recentes (retomando o gesto de Stein) esse espaço que passa a se criar passa cada vez mais pela construção de uma experiência literária que subtraia a necessidade de um sujeito individual como ponto orientador dessa perspectiva. Esse gesto, que tem suas origens na ficção, também não deixa de ser uma forma de dar continuidade (e por isso: de capturá-lo) de um movimento que existe na própria história da luta feminista. A forma como mulheres (como Amalia e Emilia) narram entre si as vidas de uma e de outra de modo também a tornar visíveis suas próprias vidas nesse processo (deslocando e desfazendo a associação tradicional de autor e narrador de uma história) acabam por constiruir uma outra forma de transmissão de experiências que evidenciem laços de solidariedade e dependência que nem por isso produzem relações de subordinação.
Não surpreende, portanto, que Ferrante termine a terceira conferência com o apelo para uma renovação do campo literário:
Hoje acho que, se a literatura escrita por mulheres quiser ter sua própria escrita da verdade, o trabalho de todas é necessário. É preciso abrir mão, por um longo intervalo de tempo, da distinção entre quem só faz livros medianos e quem fabrica universos verbais imprescindíveis. Contra a língua ruim que, historicamente, não prevê acolher nossa verdade, devemos confundir, fundir nossos talentos, nenhuma linha deve se perder ao vento. Podemos chegar lá. (p. 99)
A defesa pela abolição da distinção entre as obras medianas e imprescindíveis apenas reforça a aproximação que Ferrante fez ao longo de todas as conferências entre esses dois tipos de obras na medida em que apontava seus elementos em comum. Dessa forma, nenhuma renovação da literatura será feira por um herói fundador, que por meio de uma obra imprescindível seria capaz de renovar o gênero, mostrar os novos caminhos para uma literatura que desse conta das novas condições do mundo e que, com isso, inaugurasse uma nova etapa na história do romance, da literatura. Pensar isso seria ignorar tanto a obra de Ferrante, como suas reflexões. O que Ferrante aspira, retomando (e relendo) os versos de Dickinson é uma ação pautada na ideia que "a pura e simples união do eu feminino à história muda a história." (p. 99) Se o que está em jogo para Ferrante é esse “outro necessário”, muito mais do que uma mera experimentação formal (do qual ela é mais que capaz, ao manipular os diferentes gêneros literários conforme quer), qualquer tipo de mudança na literatura passa pela radicalização desse gesto na própria produção e reprodução dessa arte. Somente esse esforço coletivo de criação permitiria estender para a prática literária os laços sociais que já constituem em alguma medida essas vidas: ou seja, que se busque, com todos os cuidados necessários, a possibilidade de que se “diga a coisa como ela é” no meio dessa relação com o outro necessário.
O texto poderia terminar aqui, mas gostaria de fazer uma última nota pois esse texto da Ferrante conseguiu jogar uma luz sobre um incômodo com a cena literária que nunca consegui explicar antes.
Existe um certo gênero, ou tipo de texto literário, que gosto de chamar de “modernismo experimental epigonal”. Ele também poderia ser pensado como ”texto de hominho5 triste que acha que a única coisa que sobrou no mundo foram eles e as formas literárias”. Nesse tipo de texto (que amo, adoro) é normal que haja uma linguagem dificil, um estilo singular, muitas vezes um caos de impressões que tornam difícil o trabalho de leitura. Algo em que você não consegue não lembrar em toda página que está lendo UMA OBRA MUITO SÉRIA MESMO QUE OCASIONALMENTE RISONHA DE LITERATURA. O modelo clássico desse tipo de texto é inevitavelmente o Ulysses (ou se você for ainda mais foda o Finnegans Wake) e em suas formas atuais qualquer coisa do Pynchon serve também — o importante é que sejam obras super rocambolescas, formalmente sofisticadas, não-lineares, com múltiplos pontos de vista, etc. Para não me acusarem de ser apenas birrento, meu grande amor Gerald Murnane e sua obsessão pela true fiction fazem dele um exemplo virtuoso desse gênero. O Fosse, que comecei a ler agora e estou achando absurdo, incrível, entra facilmente nesse tipo ao escrever um livro de 800 páginas com uma única frase. Dá pra ver que são sempre escritores (homens) geniais, incríveis, MESTRES DE SUA ARTE.
Bem, qual o problema desse gênero? Nada em si, mas quando ele se torna único (ou melhor, a única coisa que se consome — um fato, que admito, é bem raro e circunscreve poucas pessoas) a impressão que tenho é que acaba-se reproduzindo (e reduzindo) justamente a arte romanesca a esse gesto irrepetível, incopiável do homem genial. No fim, reproduz-se uma série de hierarquias que nunca consegui aceitar (ímpetos democráticos aplicados aos objetos errados? Pois afinal, dá pra ter como demanda uma partilha do talento?), mas que tem como efeito projetar um espaço literário mais reduzido (restrito aos gênios). A consequência desse espaço reduzido são menos zonas de contato, experiências menos conectáveis (menos passíveis de serem gastas).
O problema não são esses textos, mas o tipo de fascínio que eles exercem quando tomados como a ponta de vanguarda da esfera literária. O efeito, a maneira como eles nos fazem acreditar (a ponto de nos segurar, se só isso existir) que só a grande literatura tem direito a existência. Não me parece por acaso que seus fãs mais ardorosos costumam ser homens que tem como prazer demonstrar a todo momento os livros grandes, difíceis e narratologicamente complexos que leem (muitas vezes camuflado como um gosto de experimentalismo).
Está tudo bem gostar desses livros, mas ler a Ferrante (e ela comentando sua poética), deixa bem claro o papel do “outro necessário” na constituição da experiência literária. Não apenas como um outro personagem (que permite ao narrador contar-se a si mesmo a partir do olhar do outro), mas também como um sinal de uma relação constituinte da experiência de leitura em geral parte desses empréstimos e trocas precedentes. Mas, e isso me parece fundamental, uma relação de troca em que se pode “gastar”. Ou seja, há uma liberdade diante do outro que me parece ser relacionada à compreensão e aceitação de nossa dependência não hierarquizada ele.
Isso me parece ligado ao fato que as leituras que fazemos e que nos tocam não são simples apreensões objetivas, cognitivas, de um ponto de vista do outro. O interessante da leitura parece vir também do fato de que aquilo que nos marca diz algo sobre nós (e portanto sobre como nos relacionamos com esse outro que nos transmitiu o que recebemos). Há, claro, um elemento cognitivo nessa transmissão de experiências, mas creio que sem o prazer (ou a dor, a tristeza, o nojo), a literatura não se diferenciaria de outras práticas. No fim, como diz Ferrante, há (na leitura, mas na escrita, que para ela é uma continuação da leitura) um desejo de ir para além de si. Isso fica especialmente claro na conferência sobre Dante:
Para expressar esse impulso extremo rumo à identificação, ele nos deixou — no canto IX da parte em que conjectura a felicidade celeste dos intercâmbios silenciosos, um fundir-se e confundir-se na luz mística — palavras como inluiarsi, intuarsi, inmiaris (tornar-se ele, tornar-se você, tornar-se eu). Foram verbos extremamente audazes e, por isso, malfadados. Preferimos a palavra que usei até agora: identificar-se. No entanto, naquelas palavras, vi e ainda vejo o maior desejo de qualquer um que escreve e narra: a ânsia de se desprender de si mesmo; o sonho de se tornar o outro sem obstáculos; um ser você ao mesmo tempo que você sou eu; um fluir da língua e da escrita sem mais sentir a alteridade como um estorvo. (p. 115)
Esse esforço, me parece, é semelhante ao esforço de amar, de viver mais que uma vida (ou de entrar em contato com o fato de que a nossa vida é mais do que ela é atualmente: um pequeno gosto do infinito).
Para além de suas vantagens próprias, me parece que diante desse tipo de literatura modernista epigonal a literatura ferrantiana (e sua poética) fornece um poderoso antídoto que nos permite desejar um pouco mais e nos sentir mais livres para experimentar de uma forma que talvez antes não nos permitiríamos habitualmente.
Agradeço à Júlia pela leitura do texto, pelas trocas sobre Ferrante ao longo dos anos e ao Bruno, com quem boa parte das questões de fundo desse texto vem sendo desenvolvidas em alguns trabalhos que ainda vão ver a luz do dia.
Não consigo não lembrar, pela proximidade da leitura, dessa definição provisória de literatura de Karl Ove Knausgård em um comentário sobre Jon Fosse: “The protagonist in Michel Houellebecq’s novel Submission reflects on the nature of literature, which he says is not hard to define. Like literature, music can overwhelm us with sudden emotion, and painting can make us see the world through fresh eyes, but only literature can put us in touch with another human spirit with all its weaknesses and grandeurs, and this presence of another person is, he suggests, the very essence of literature, adding to this his astonishment that philosophers have devoted so little attention to such a simple observation.” Ainda que hajam diferenças (que espero pontuar um pouco mais a frente), essa ideia de a literatura ser o espaço em que entramos em contato com outra alma me parece não apenas incorporada na arte de Ferrante, como também re-elaborada a partir da torção que representa a Tetralogia (torção tanto em seu percurso, como também no campo da literatura atual).
A língua movida por si mesma, incitada pelo amor, não seria a alma, essa parte de nós que move a si mesma e comanda o corpo do qual ela se serve? Sou incapaz de não fazer Platão reaparecer por todos os cantos.
Embora, para outro momento, talvez seja possível dizer que além da sinalização de suas contemporâneas Dante, sendo fiel à sua poética de empréstimos (que ao final do livro parece uma das principais fontes da de Ferrante), também esteja dando voz a elas na medida em que reescreve (esticando, alterando) a Diotima de Platão em O Banquete, que por sua vez também apontaria para uma vida mais rica das mulheres do que costuma-se permitir na descrição de mulheres.
O conceito de hominho foi inventado (e está em processo de elaboração mais exaustiva) por Ligia G. Diniz.
Roberto Arlt, Ricardo Piglia, César Aira. Mesma linha — mais potente.
Barthes, nos inícios, defendia mesmo a literatura como essa mescla de familiaridade e estranheza. A própria história da literatura (enquanto fenômeno moderno) segue por aí: abertura do sistema postal ao público, industrialização da (im)prensa: letras contra letras — consolidação de um estado médio da língua x seu uso sem comprometimento e desvio de si.