Uma série de questões, conversas e leituras diversas tem me deixado cada vez mais próximo dos estudos literários nos últimos tempos. Faz tempo que ensaio tratar de maneira mais sistemática meu interesse na literatura (fora exercícios pontuais aqui no blog). Ainda que não seja aquilo que vou discutir aqui, é digno de nota que uma consequência disso foi relembrar da centralidade que parece assumir nos discursos literários o procedimento do close reading (ou “leitura atenta”), que costumeiramente parece ser mencionado com intuito de demarcar algum tipo de decadência na crítica (ou como planos para resolver todos os impasses de “leituras ruins ou pobre”). Apesar de sua importância num certo “burburinho” da cena institucional literária, tampouco quero abordar a história e o papel desse procedimento1. O que me interessa aqui é que reocupar esse campo me lembrou de certos incômodos que tenho com a presença desse procedimento na instituição filosófica. Uma presença que me parece ao mesmo tempo benéfica e problemática e que gostaria de tentar elaborar aqui para dar uma vazão a um certo mal-estar que tenho com meu próprio campo2.
Para evitar delongas, acho que o aspecto benéfico não só é bem visível, como ele já foi amplamente documentado por Paulo Arantes em algumas de suas obras (sobretudo Um departamento francês de ultramar e O Fio da meada). De maneira breve poderíamos dizer que foi a partir da leitura atenta de clássicos da filosofia a partir dos anos 60 e 70 (com forte influência da historiografia filosófica estruturalista de Guerault, Goldschmidt, Lebrun e companhia) que a filosofia brasileira teria se profissionalizado3. A profissionalização deve ser entendida aqui tanto num sentido de que ela se tornou mais “séria”, largando um certo ecletismo de certos predecessores (escondidos ou invisibilizados pela posterior geração “profissional”), como também no sentido de que ela implicou a delimitação de um campo de atuação para o filósofo (cada vez mais identificado nesse contexto com “professor de filosofia” ou “historiador de filosofia”). A partir dos anos 70, fazer filosofia no Brasil — o que significa também se estabelecer nesse espaço institucional — implicava ser capaz de produzir comentários sobre clássicos da filosofia4.
Os métodos certamente podem variar. Nem todos se manterão fieis ao escopo “internalista” da pegada estruturalistas. Muitos, para mencionar um exemplo, farão tratamentos históricos, situando as obras em contextos mais amplos de onde o sentido das obras ganha mais clareza. Apesar dessa variedade, cabe dizer que um certo apreço pela “leitura adequada” do filosofema se mantém. O pão de cada dia do filósofo ainda será a sua capacidade de ler um texto, entender certos trechos e passagens chaves, reconstruir seus argumentos (muitas vezes para fins de ensino), esclarecer momentos obscuros e tornar visível o movimento que se constrói ali. Mesmo em análises menos estruturalistas, mesmo naquelas que se olham para um texto filosófico como um registro histórico, como um sintoma de uma ideologia, visão de mundo etc, o historiador em questão devem em algum momento ser capaz de conectar suas hipóteses sobre o texto com o próprio texto. Assim, o ato de ler, refletir sobre o que se leu e justificar essa leitura, me parece o centro da operação de close reading que sustenta boa parte da produção filosófica nacional desde os anos 705.
Como falei acima, isso não me parece uma escolha “filosófica” simplesmente, mas também o efeito de um certo arranjo institucional. Me parece que num contexto universitário em que é necessário cada vez mais tornar seu trabalho inteligível para outros pares para se conseguir obter mais recursos financeiros (seja como bolsas, seja como empregos), a “leitura atenta” permite um critério que torna hipóteses e ideias compartilháveis e comunicáveis no ambiente acadêmico. Afinal, apesar de não se poder comprovar de maneira definitiva a veracidade de determinadas teses filosóficas, me parece que é infinitamente mais simples (o que não significa ser sem complexidade) olhar um texto e tentar articular o que ele diz (ou seja, falando de modo vulgar, especificar seu sentido e não seu valor de verdade). Podemos não ter certeza sobre as verdades que um filósofo constrói (será que a descrição do cogito cartesiano de fato implica na sua verdade?), mas podemos mirar em buscar um consenso sobre essa coisa bastante determinada que são os textos que ele escreveu (que tipo de argumento Descartes constrói para defender a ideia do cogito como princípio?). Ainda que muitas dessas discussões possam ser intermináveis (muitas vezes por conta de comprometimentos hermenêuticos jamais explicitados em debates), o texto (ou “discurso”, caso queiramos sair do universo textual) é algo que serve como ponto de estático de avaliação. Pode-se sempre olhar a nota de rodapé, consultar o texto comentado e fazer ali na hora um juízo sobre se aquele comentário procede ou não — visto que mesmo a discordância depende se dá a partir desse ponto fixo. Ainda que não seja do ponto de vista procedimental este não seja um dos movimentos mais espalhafatosos na história da filosofia, essa prática historiográfica ajudou a dar um pouco mais de segurança na hora de se discutir filosofia6.
Dito isso, acho que cabe também entender e arcar com as consequências dessa forma institucional da filosofia ter se disseminado a ponto de se tornar hegemônica — e como soma; da hegemonia, basta pensar nos processos de seleção para professor, no que candidatos precisam fazer, como eles devem ser capaz de “justificar” suas leituras, mais do que defender qualquer verdade filosófica. Me parece bastante óbvio, embora difícil de evitar, que essa escolha conciliadora entre texto e filosofia tem como resíduo a confusão entre filosofar e interpretar. Um dos efeitos mais nocivos (mas melancolicamente inevitáveis, como um efeito indesejado de uma conquista positiva que foi a estabilização de certas conversas) é que muitas vezes confunde-se construir uma ideia, uma teoria, com a capacidade de “ler um texto” e “identificar o sentido do texto do autor”. Vou falar aqui de maneira bem vulgar (como já estou falando nesse texto todo), pois de fato acho um problema bem corriqueiro em nosso meio. É bastante diferente alguém ler um texto do Marx (o Capital, o Manifesto) para derivar hipóteses e conclusões a partir desse texto — o que pode levar à ideias e noções que até contrariem o texto do qual se partiu — e ler um texto para entender o sentido desse texto. Temo que por hábito institucional — arraigado nas práticas pedagógicas e nos processos de reprodução da disciplina — essa diferença fundamental acaba se perdendo (sem que admitir isso implique assumirmos que se deve jogar fora a importância do passo de profissionalização da filosofia por meio da leitura atenta). O fato é que parecemos termos nos acostumados demais a acreditar que se lemos os textos certos com atenção e cuidado (seja lendo e relendo pacientemente, seja entendendo os contextos, seja encarando a bibliografia secundária exploratória, seja como for) acabaremos de alguma forma nos aproximando de hipóteses, teorias ou ideias — e muitas vezes fazemos isso contra a nossa vontade, já que esses hábitos podem retor de maneira inconsciente.
Devemos ter cautela em tomar a solidificação desse hábito em nossas instituições como um sinal de um avanço histórico em nossa experiência do filosofar. Me parece um erro enorme propagar essa confusão, já que em momento algum a filosofia é redutível aos textos. Talvez isso pareça uma hipótese forte (até datada, após as inúmeras críticas de um Derrida), mas acredito piamente que as diversas práticas de transmissão da filosofia em sua história (elemento essencial de sua reprodução) são sinal de que as ideias não são redutíveis ao texto ali presente. Certamente podemos não saber (ou discordar sobre!) o estatuto dessas ideias que estariam presentes em um texto filosófico. Mas se tomássemos elas como idênticas ao texto, a prática de ensino da filosofia se assemelharia apenas a uma mera decoreba dos clássicos (o que não impede que certas tendências incorporem a memorização em suas práticas pedagógicas como uma de suas etapas). O ensino de filosofia seria indistinguível de uma transposição de palavras passadas para a nossa memória, como se estivéssemos internalizando um certo discurso para fazê-lo funcionar como um encantamento que não podemos desviar nem um pouquinho! Sabemos que esse não é o caso.
O método dialógico de Platão inclusive me parece ilustrar e modo singular esse impasse na medida em que ele frustra qualquer pessoa que busca se aproximar de suas ideias por meio das “palavras escritas”. A pergunta pelas “ideias de Platão”, por entender se Sócrates é ou não o porta-voz de Platão, ganha sentido e relevância se entendemos que as ideias podem de fato se igualar ao texto que as exprime — se acreditamos que elas se encontram presentes no texto (ainda que eventualmente obscurecidas por estilo ou referências que não sejam imediatamente legíveis atualmente). Se texto e ideias forem indistinguíveis, então o desafio na leitura do texto platônico é localizar quais as palavras relevantes, quais os procedimentos estilísticos encobrem — e como — o fio teórico elaborado pelo autor. Fosse esse o caso, porém, teríamos que ignorar uma das grandes advertências de Sócrates em O Banquete: isto é, que o saber não é como um vinho que está num jarro e que este pode ser facilmente transferível para um outro jarro quando inclinamos um em direção ao outro. Na verdade, o que vemos nos diálogos é que a estrutura teatral, dramática, não é a adoção de um gênero qualquer7. Parece ser um esforço para deixar claro que filosofar é realmente um processo que demanda que os leitores tomem posições, que sejam capazes de pensar e fazer as conexões por si mesmos8. Onde estão as ideias? Onde estão as hipóteses? Certamente os textos — da filosofia, não apenas os diálogos platônicos — são indicações formais das conexões que devemos fazer, mas jamais aspirando substituí-las. É como se a dificuldade que encontramos não fosse simplesmente estar desacostumado com uma certa linguagem, mas com a própria dificuldade de pensar certas ideias — ou de simplesmente pensar ideias.
É evidente que nesse processo, entender o texto que exprime as ideias é uma parte fundamental do processo. Mas confundir esses dois momentos (entender os textos e entender as ideias) implica também ignorar que esses dois momentos não são homogêneos. Críticas à como se lê um texto nem sempre implicam num demérito da hipótese levantada por quem se apoia (ou deriva) deles. Assim como, por outro lado, a veracidade de uma hipótese não garante que chegamos a uma leitura definitiva de um texto. Confundir esses dois momentos me parece um convite para que certas conversas não andem — e que algumas armadilhas mais perigosas sejam postas no jogo.
Não tenho aqui uma solução que torne possível demarcar de maneira definitiva o que é a ideia que estaria presente num texto — e nem acredito que isso seja possível, visto que a própria linguagem é apenas uma das maneiras que buscamos compreender o que são as ideias e não aquilo que as cria —, mas acredito que é fundamental saber diferenciar esses dois momentos. E acredito isso por uma aposta. Caso contrário não nos permitiremos jamais evitar algumas das possíveis consequências patológicas do “textocentrismo”, isto é, dessa forma institucional da filosofia que tende a se concentrar no texto e por isso confunde o sentido com a referência. Corremos o risco de acreditar que para encontrar verdades filosóficas nos resta ceder à paranóia ou à neurose. Paranóicos no processo de acumulo de textos e mais textos, como se em algum texto específico (ou no conjunto de leituras de uma quantidade incontáveis de textos) pudesse se desenhar em nossa frente (ou ao menos no horizonte) algum pensamento verdadeiro9. Neuróticos por acreditar que um mergulho profundo e repetitivo no mesmo lago finalmente (ou em algum momento!) nos revelará a chave de acesso para o pensamento perseguido por determinado filósofo. E ainda que nem sempre sejamos engolidos totalmente por essas versões patológicas do “textocentrismo”, a própria forma da instituição filosófica se construir a partir desse tipo de operação nos deixa sob risco constante de sermos parcialmente tomado por esses impulsos.
Assim, é por acreditar que a filosofia nunca foi só isso, que prefiro fazer essa aposta na distância entre texto e pensamento10. Uma aposta na hora de ler os textos, de que há algo ali que está para além das palavras escritas (para além do discurso) — e que, sendo pensamento, joga luz sobre os problemas que me ocupam. Como disse, não tenho como provar a distância, mas ao menos me consola que na própria história da filosofia encontramos essa aposta sendo feita vez após vez pelos incontáveis filósofos que sempre acabaram dizendo um algo a mais do que os mestres que escolheram seguir11.
Esta origem é bastante discutida ao longo da oitava temporada de The American Vandal: Criticism LTD, sobretudo no episódio que discute as origens dessa prática nos Estados Unidos a partir de um grupo de críticos racistas.
Sobre esse mal-estar (com as devidas referências), recomendo a leitura desse texto.
Profissionalização que, ao meu ver, não é nem boa nem má, mas somente um efeito de determinados processos que parecem surgir na medida que a filosofia adentra a universidade. Refiro mais uma vez ao meu artigo mencionado aqui na nota anterior.
“Clássico” aqui é usado da maneira mais ampla possível, não significando de maneira restrita as obras “eternizadas” na tradição. Caberia um comentário mais longo, mas o importante é que o clássico seria uma obra que tem como objetivo sustentar determinados posicionamentos filosóficos sobre algum problema (o que, ao meu ver, incluiria tanto obras esquecidas pela tradição como também trabalhos mais contemporâneos). Por razões históricas do momento (acredito) que não pretendo discutir aqui (mas que O fio da meada torna inteligível), no momento da instalação desse procedimento na USP (pólo radiador desse procedimento no Brasil), haveria uma ideia de que não seria mais possível produzir “obras filosóficas” no sentido mencionado acima, restando apenas o trabalho diligente do comentário. Importante deixar claro também (como uma nota de rodapé a esse rodapé), que essa visão da história (tanto a acusação de ecletismo de filósofos anteriores, como também a impossibilidade presente da filosofia) não é neutra, mas é parte do próprio mito fundador que inaugura essa tradição de comentário no Brasil.
Há exceções, há a tradição analítica (pequena em nosso país), há também os textos que dialogam com referências mais concretas (análises políticas ou estéticas). Deixarei em suspenso esses casos por não serem hegemônicos.
Associado, certamente, a outras práticas textuais que diferenciam esse tipo de método de outras formas de comentário que existiram ao longo da história da filosofia. Não nos ocuparemos aqui, porém, dessas diferenças, mantendo a discussão num nível superficial sob esse ponto para tornar o problema tratável nesse pequeno escopo.
As discussões de Andrea Wilson Nightingale em Genres in Dialogue: Plato and the Construct of Philosophy são imprescindíveis para levar adiante esse problema no contexto platônico.
Talvez nenhum comentário tenha deixado tão claro pra mim esse fato quanto o pequeno texto de Rosemary Desjardins sobre o diálogo Mênon.
Guilty!
E isso que digo não deixa de ser um eco, num problema mais específico e restrito, do mantra de um outro platonista que muito me inspira (Badiou) que insiste que “só há corpos e linguagens, exceto que há também verdades.”
Isto é, não falo apenas dos momentos em que há discordâncias, mas da maneira como a própria estrutura de mestre-discípulo acaba sempre trazendo pra jogo alguma novidade no processo mesmo quando discípulo busca fidelidade ao seu mestre.