O conceito, o nome e o referente
Uma tentativa de analisar a filosofia a partir de três correntes
Rolou uma iluminação num grupo de leitura que estou participando sobre o Badiou que a história da filosofia pode ser organizada a partir de três “correntes”: três formas de mobilizar a elaboração categorial genérica. As distinções entre essas correntes são toscas, mas acho que ajudam (pra mim) a visualizar alguns problemas, sobretudo me ajudam a entender uma impressão que eu tenho sobre a estranheza do platonismo. Enquanto boa parte das filosofias buscam construir um discurso que permita deduzir de conceitos a realidade (ou se não deduzir a realidade, ao menos compreender as condições dos discursos sobre a realidade), a obra platônica não parece tão preocupada em deduzir tudo “de uma vez por todas”.
Para conseguir entender esse problema, me apoio num pequeno poema de um amigo que está nesse grupo (Pedro Gomlevsky) e que esteve presente nessa discussão que deu origem a essas ideias. O poema é bem simples, e parte de uma distinção não explicada entre conceito, nome e referente (que ele chama de “coisa”):
Existem três coisas:
O nome, o conceito e a coisa.
Existem três conceitos:
A coisa, o nome e o conceito.
Existem três nomes:
O conceito, a coisa e o nome.
Os termos, como disse, estão subdeterminados. A princípio eu poderia dizer que de alguma forma o conceito diz respeito a um conjunto de justificações/explicações, o nome aponta para um campo de enunciação/dizibilidade (diria que é o que apresenta problemas) enquanto o referente (que ele chama de coisa) diz respeito àquilo que produz efeitos não-discursivos. O problema é que além de estar subdeterminado, está muito arbitrário (o que torna problemática essas diferenciações). Se eu fosse tentar definir melhor esses termos, seria necessário destacar o que eles fazem de diferentes uns dos outros a partir da maneira como eles aparecem em diversas filosofias (como isso é apenas um exercício, não pretendo extrair todas as consequências nesse texto dessas diferenças, nem elaborar de maneira mais firme essas ideias).
Em primeiro lugar tem a corrente mais dominante historicamente, que é aquela que busca elaborar uma continuidade entre o conceito e seus referentes. Nesse caso elabora-se uma “lógica” em que se consegue conectar um conceito à coisa por meio de uma explicação Ou seja, o conceito explica os referentes, mostra uma cadeia dedutiva em que em última instância (a depender do radicalismo do filósofo, ou mesmo da lógica específica que emprega) aponta para a gênese do referente — no caso um dos sonhos patológicos da filosofia, ser como deus ao ser capaz de deduzir o mundo a partir do lógos. Essa corrente, que eu chamaria de espinosana (devido à ênfase que se tem em sua filosofia da conexão substância-modos), pode ser localizada também em Hegel (uma certa leitura de Hegel, ao menos, que busca apontar a relação entre a ontologia e a natureza), Simondon (que faz isso sem um aparato “transcendental”) e eu diria neoplatônicos (mas aqui conheço pouco, fica aqui apenas um aceno antes que alguém diga para mim “não, os neoplatônicos não são assim, inclusive é um erro chamá-los de “neo” etc etc). E os nomes? Bem, nessas filosofias eu diria que o nome é aquilo que aparece uma vez que se constitui uma conexão lógica entre conceito e referente. Isso talvez possa aparecer expresso de maneira mais exemplar no pseudo-mote espinosano Deus sive natura, em que uma lógica conceitual (a substância como causa de si e causa de todas as coisas — e tornando explicável todos os referentes) é nomeada como natureza (um campo de problemas que por sua vez ganha sentido ao emergir desse contexto).
Uma outra corrente, seria aquela “trasncendental” tem como principal ponto de ênfase a relação entre conceitos e nomes. Nesse caso não há propriamente uma relação com os referentes, já que esses são sempre de alguma maneira absorvidos indiretamente por meio dos nomes. Assim, no fundo temos uma filosofia que toma como uma espécie de caixa preta a relação entre nome e referente, já que a sua elaboração não pertence ao filosófico (e que talvez possamos ligar aqui a uma autonomização do discurso científico experimental, que acabaria no tempo assumindo essa função). A partir dessa premissa filosofia transcendental seria aquela que busca compreender como se regulam os discursos, a elaboração das condições de seus sentidos para que os próprios nomes (o campo dos discursos sobre as coisas) possam ser empregados de maneira mais adequada (mas adequada sempre de acordo com esse conceito). Acho que também dá pra dizer que é uma certa tradição que se desenvolve a partir da tentativa de evitar cair no “mito do dado” sellarsiano. Se fosse para destacar alguns nomes eu acho que além do Kant, dá pra mencionar também o próprio Sellars e o Deleuze (embora talvez não totalmente, já que ambos tem aspectos platônicos em suas filosofias que os deixam num meio de caminho) e em alguma medida acho que qualquer pensamento que busca localizar a filosofia como um discurso das condições de possibilidades de outros discursos. Nesse caso, porém, não temos uma dedução do nome a partir dos conceitos (como a continuidade entre conceito e referente), mas uma relação de generalização dos nomes para o conceito. Assim, o conceito funciona como condição de possibilidade do nome.
Por fim eu acho que existe uma corrente que eu chamaria propriamente de socrática (gostaria de chamar de platônica, mas acho que o neoplatonismo acaba mostrando que existem outras potências em Platão, mesmo que eu não me veja nelas) tem como foco a relação entre o nome e o referente. Nesse caso, o nome aparece como um espaço de uma visibilização do referente (e qualquer elaboração conceitual que visa torná-lo explicável em última instância resulta em aporia). Nesse caso, porém, a filosofia não se compromete nem com uma continuidade dedutiva (como na relação conceitos —> referentes) nem com uma regulação (como na relação nomes —> conceitos). O que a filosofia faz nesses casos é uma espécie de diálogo que simplesmente procura dar espaço pros referentes aparecerem como problemas, como questões que em alguma medida já tem em seus campos suas próprias leis, regras e comportamentos. Penso sobretudo nos diálogos platônicos, em que um conjunto de práticas causa equívocos em sua própria nomeação (“afinal, o que é a amizade, a justiça, a temperança?). Diria, portanto, que temos aqui uma operação em que os nomes aparecem a partir dos referentes (referentes —> nomes). Pode-se então que o socratismo é uma prática discursiva que busca respeitar a autonomia dos referentes sem por isso abrir mão de trazê-los para o pensamento (o que acabaria configurando a atopia do discurso filosófico nesses casos). Nesse enquadramento, os conceitos (as justificações/explicações) seriam o mecanismo de depuração/decantação dos nomes. Assim, o papel da filosofia seria ser uma escuta que não é nem tão necessária assim (já que as práticas elas mesmas não estão ancoradas nem em seus nomes nem nos conceitos)? Acho que ainda seria necessário elaborar um pouco mais os produtos dessa operação. Nesse último caso acho que os principais nomes além de Sócrates para mim são: Platão (óbvio) e Badiou. Mas independente dos nomes (pois muitas vezes acho que esses “modos” vem misturados) o que interessa marcar nessa corrente é o lugar central para os referentes (que a faz divergir das outras duas).
Bem, isso é apenas um exercício, como falei. Uma tentativa de tentar diferenciar alguns modos de prática filosófica para também entender alguns dos desentendimentos que ocorrem entre as próprias filosofias. E embora eu tenha predileção por um dos métodos, busquei também compreender cada uma dessas formas a partir de filósofos que amo (Espinosa e Kant, além de Platão) para me forçår a entender que cada uma delas tem seu lugar (ou melhor, cada uma delas responde a um problema diferente).
Inclusive, essa distinção me fez inclusive pensar se não seria possível compreender essas diferentes formas de filosofia a partir da teoria dos modos de intercâmbio de Karatani (apresentadas na introdução do Estrutura da história mundial). Se fosse esboçar essa divisão, apresentaria ela da seguinte forma:
Socratismo —> modo A
Espinosismo —> modo B
Kantismo —> modo C
A corrente espinosana (ou hegeliana) tem um caráter estatal (pilhagem [de referentes] e redistribuição [em conexões conceituais) pelo caráter central que o discurso filosófico conceitual tem para esses pensadores. A filosofia é o campo que de alguma forma determina a lógica de tudo que há. A corrente transcendental kantiana, ainda teria essa dimensão de dominação, mas exercida segundo outra direção. No lugar do discurso filosófico determinar o que há fora dele, ele emerge como uma espécie de equivalente geral (semelhante à lógica das mercadorias na qual surge o dinheiro) que permite a regulagem entre discursos. Assim, encontramos ali a possibilidade de um discurso crítico que não é positivamente determinado de antemão, mas que aparece como condição de toda discursividade. Por fim, a corrente socrática teria algo da lógica da dádiva, na medida em que as relações de troca entre discursos filosóficos e não-filosóficos não seguem uma ordem pré-determinada e não conseguem se cristalizar numa relação de dominação estável, mas mantém-se a diferença entre referentes e nomes, sem que um possa ser dissolvido no outro.
Nada disso é também muito firme, mais uma vez, apenas um exercício que talvez possa alongar num futuro não tão distante. Mas acho que talvez ajude um pouco a localizar algumas ideias que ainda estão em processo de elaboração na minha própria cabeça, mesmo que depois acabe recusando todas as especificidades dessas distinções que elaborei acima.