Notícias de uma pesquisa em desenvolvimento sobre "desorientação"
ou alguns passos de um caminho levemente desorientado
Como me sinto quando não é possível só transmitir minhas ideias no twitter e preciso escrever um texto mais longo.
Gostaria de aproveitar uma certa janela de procrastinação como um respiro para pensar ideias que não poderei ainda desenvolver agora (afinal, estou tentando, aos poucos, escrever o famigerado livro sobre “as instituições filosóficas” nos intervalos dos trabalhos que me ocupam). Como imaginar e planejar tem todo um gostinho, vou aproveitar então essa energia, concentração e ímpeto que só o desvio de necessidades e prazos produz para esboçar algumas ideias.
Como alguns sabem, tenho tentado pensar desde o final do ano passado o problema da “orientação” ou “desorientação”. Como escrevi no twitter alguns dias, a pergunta poderia ser resumida em: “O que significa ‘se orientar no pensamento’ se nós somos em boa medida ininteligíveis para nós mesmos?” Estou pensando em levar adiante uma percurso dessa pesquisa sobre o problema da orientação/desorientação no mundo contemporâneo a partir de um esquema explicitamente badiouano. O Badiou no seu ensaio recente "Comentários sobre a desorientação do mundo" (infelizmente só em francês por enquanto) diz que "a desorientação provêm, sempre, da derrota provisória, ou ausência mal explicada, de um procedimento de verdade." Ele continua:
"O ponto fixo da Verdade, afirmada como tal, é o que dá sustentação para toda orientação estratégica na existência, privada como pública, dos animais humanos que somos, seja essa orientação praticar as consequências [a partir] desse ponto fixo, seja, ao contrário [para] as ignorar tão sistematicamente quanto possível."
O que está em jogo aqui como esse ponto de verdade não é, porém, algo místico ou um fundamento último. A verdade estabelecida (do qual extraímos as consequências) pode ser, como o Badiou afirma algumas páginas depois, a capacidade de dar seguimento a certos avanços nas ciências no campo de doenças infecciosas (a importância das vacinas para a população geral por exemplo). As verdades para Badiou não se restringem ao campo da ciência. Além das ciências, haveriam procedimentos de verdade no campo das artes, da política e do amor. Assim, a desorientação seria o "sumiço" de alguma verdade do presente que nos impede de nos localizar no presente.
Assim, uma ideia que tenho é explorar essa "ausência de verdades" (gosto de pensar, de maneira informal e sem fazer equação com o sistema badiouano ainda, em "ausência de critérios") que parecem existir hoje em dia nesses quatro campos ("condições de verdade") que ele distingue. Assim, queria conseguir, a título de exercício, dar uma descrição superficial da desorientação que é possível encontrar em cada um dos campos. Separo esse diagnóstico, então, nessas quatro categorias: ciência, amor, política e arte.
No campo da ciência o próprio Badiou á a letra (mas não só, muita gente, inclusive daqui, como a Déborah Danowski, a Alyne Costa e a Tatiana Roque): trata-se do problema do negacionismo que tem tido efeitos complicadíssimos no contexto das crises climáticas e pandêmicas. Isso não significa dizer apenas que "ignoramos a ciência" e que deveríamos restituir as condições em que esta podia ditar os passos das organizações políticas a partir da segurança de suas verdades duramente conquistas. Além de isso ser uma ilusão retrospectiva sobre um passado bem mais complicado, parece também ignorar que existem forças muito ativas produzindo essa incapacidade de elaborar certas coisas que, em determinados pontos de vista, parecem inequívocas. Assim, cabe investigar que outras estruturas tem impedido a circulação e se perguntar também se há também outras experiências que poderiam ser qualificadas de científicas (mas que nem sempre tem o respaldo institucional na modernidade) cuja circulação também está sendo restrita.
No campo da política aqui poderíamos nos apoiar em vários diagnósticos sobre o fim das expectativas e o cancelamento do futuro (de alguma forma estamos aqui no diagnóstico de “Mark Fisher” em seu realismo capitalista). Isso não é um fenômeno tão recente. Seguindo algumas impressões de Kojin Karatani, poderíamos datá-lo do fim da URSS, pois ainda que esta estivesse já em crise (e os próprios esquerdistas estivessem em crise com ela), parece inegável que a ausência dessa força política acaba retirando um certo “conforto” no espectro da esquerda. Apesar desse início naquele período, parece que a estagnação que se construiu depois (e pontuada ao longo dessas décadas por inúmeras tentativas de religar o motor) tem se tornado cada vez mais impossível de evitar sentir na pele. Estamos em um momento em que é difícil ter pela frente qualquer tipo de otimismo. Mas isso não significa que um niilismo se instaurou. É por essa razão que quanto a esse ponto queria me deter em análises como as do Paulo Arantes, ou da "Masterclass de fim do mundo"(para ficar em dois exemplos) que procuram mapear com bastante cuidado os conflitos políticos em que estamos imersos sem se deixar contaminar totalmente por um pessimismo. Mais uma vez: o interesse aqui não é simplesmente lamentar algum common perdido, mas de tentar entender como certas compreensões que mobilizavam a política se encontram constrangidas para que se possa também localizar e mapear aqueles esforços dispersos que vem procurando resistir ao cancelamento do futuro.
No campo das artes, tenho pensado de uma forma bastante dispersa sobre como os conceitos de “valor” ou “qualidade” tem estado em crise já há algum tempo. Não apenas temos uma revolução (contra-)canônica que tem deixado cada vez mais insustentável a manutenção de um corpus de homens europeus brancos e mortos (amém), como também temos nos tornado muito mais permeáveis para experimentações entre os diversos campos artísticos devido às facilidades de comunicação que se desenvolveram nas últimas décadas. Apesar disso, talvez seja possível dizer que em alguma maneira isso não venha sem uma certa dificuldade. Boa parte dessa diversificação se constitui a partir dos interesses do mercado mais variado (seja das editoras, das gravadoras, das grandes empresas do cinema, dos serviços de streaming etc) que acabam também reorganizando a prática artística e instaurando diferenças entre aqueles que podem viver da arte e aqueles que trabalham para fazerem sua arte (algo que se evidencia no ensaio de J-P Caron e Bruno Trchmnn). O desejo de ir da segunda categoria para a primeira não raro acaba tornando o campo artístico extremamente repetitivo e minando as esperanças de uma arte em alguma medida livre. Evidentemente me sinto incapaz de abarcar essa questão como um todo, então pretendo me concentrar especificamente na maneira como o valor literário vem conflacionando de modo desconfortável o mundo do trabalho e o mundo das artes.
Por fim, e talvez no mais delicado dos tópicos, gostaria de abordar as desorientações próprias ao campo do amor. Se talvez os outros campos são mais “imediatamente reconhecíveis” como campos de análise, o amor parece sempre um tema ou maior (pois acima de qualquer análise) ou menor (por não ser um fenômeno realmente de onde se poderia extrair algo). Contra isso estamos junto de Badiou (e também de Anne Carson, como espero ter mostrado aqui) ao acreditar que tratam-se das verdades relativas à vida à dois. E esse dois aqui não sendo entendido como simplesmente um casal, mas como aquele espaço da intimidade em que vivemos para além de nós mesmos em uma configuração que jamais se estabiliza como uma nova unidade. Ainda que seja a condição de verdade menos trabalhada por Badiou, não deixa de ser uma das que mais deixa marcas e sofrimentos em nossas vidas. Assim, gostaria de tentar elaborar como as dificuldades do mundo atual (sobretudo a precariedade, a ausência de perspectiva de empregos) tem tornado cada vez mais difícil assumir as relações amorosas que muitas vezes dão sentidos para as nossas vidas. Afinal, como deixa muito claro Eva Illouz em seu Why love hurts, se o amor é um problema, isso é um efeito também do caráter econômico que essa vida a dois possui num mundo em que as estruturas familiares (enquanto suportes materiais) tem se desestruturado cada vez mais. A desorientação relativa ao amor me parece, portanto, a dificuldade de suportar certas contradições implicadas na decisão de partilhar a vida com alguém.
O que se tem acima é, portanto, um plano de examinar algumas referências que, acredito, podem ajudar a tornar mais palpável ou sensível as sensações de desorientação (de estarmos perdidos, de não sabermos para onde ir) que acredito que caracterizam nossa experiência coletiva atual. Evidentemente que não pretendo esgotar nada, mas apenas produzir uma “primeira mão” nessa pesquisa (e uma pesquisa que verdadeiramente não poderia se realizar sozinha e que de alguma maneira se liga com meu envolvimento no grupo de pesquisa “Subset of theoretical practice” e de nosso trabalho coletivo mais recente, o atlas de política experimental). Tomo esse esforço, portanto, como uma mensagem que espero (por mais cafona que isso soe!) outras pessoas que sentem as mesmas aflições.