Leituras 2023 (#9): O Século, Alain Badiou
O Século (2005), Alain Badiou, traduzido por Carlos Felício da Silveira, editado pela Ideias & Letras (2007)
Quanto mais somos impactados por um livro mais difícil falar sobre ele. Preciso admitir também que o plano inicial de fazer comentários mais longos encontra um limite nas minhas obrigações que tem aumentado após o fim das férias. Ainda assim, esse exercício retém algum valor, acredito, mesmo se conseguir delimitar em um parágrafo (ou algumas frases) em que medida algo me impactou.
O século é um livro esquisito. Uma espécie de história do século XX por meio das ideias que o mobilizaram. Seguindo o que o autor chama de um método de máxima interioridade, que busca se aproximar das questões do século na medida em que o próprio Badiou se encontra confrontado por elas, temos em cada capítulo algum fragmento de um texto ou de um evento que ou busca pensar o que o século é ou reflete sobre o que está implicado nos seus eventos. Como falei, isso acaba resultando numa composição no mínimo esquisita (diferente do que estamos acostumados a ler). Assim, começando com uma discussão sobre as perspectivas do século em um poema de Osip Mandelstam (A besta, de 1923), Badiou realiza uma tour de force ao explorar o que significa a promessa de um novo homem que foi tão cultivada (e buscada) ao longo do XX. Destruição das antigas formas ou simples subtração que busca encontrar a mínima novidade (como no suprematismo de Malevich)? Mistura caótica que devemos deixar levar (como na Ode Marítima de Álvaro de Campos) ou desejo de uma comunidade que mantenha sempre a tensão entre um eu e um nós (como em A decisão de Brecht). Ainda que o livro não tenha uma estrutura cronológica ou sistemática, a gente encontra ao longo dos capítulos uma investigação exaustiva das formas que o século buscou construir esse novo homem, o que esse desejo significou, as diferentes interpretações (seus aspectos cruéis e emancipatórios), os impactos na política, na arte, na ciência e no amor dessas ideias. Nada disso, porém, tem um objetivo meramente antiquário. O método da máxima interioridade significa que as questões e as ideias que são examinadas são, enquanto ideias, vivas, coisas que permanecem conosco e nos permitindo participar de uma certa eternidade mensurada pelos impasses que essas ideias buscam refletir. Assim, Badiou se encontra constantemente implicado pelos problemas que ele restitui dos fragmentos do século XX que ele enfileira. Vemos claramente como esse desejo de um novo homem é de alguma forma a sua própria aspiração e a maneira como ele próprio foi levado a pensar as inovações políticas, científicas, artísticas e amorosas desse século.
O grande problema é que esse esforço de construção de um novo homem não veio sem custo, sem mortes, sem a necessidade de aceitar um sofrimento (basta olhar para os sacrifícios nesse período). Da ressaca desse movimento emergiria então um humanismo que toma como principal meta evitar o sofrimento (e que encontra como braço institucional, como muitos já apontaram, uma certa ecologia de ONGs). Com esse novo objetivo (reação direta aos efeitos das promessas do século), o ser humano abriria mão das enormes perspectivas de emancipação que abriram o século. Mas, se por um lado, como admite o Badiou, faz todo sentido que em alguma medida se insurja contra esse aspecto cruel da emancipação — como se não conseguissemos mais aceitar que os corpos humanos são simples receptores passíveis de sofrimento que tem de tudo suportar em nume de uma ideia — cabe perguntar se a única saída que há é aquela que traz consigo também o fim das aspirações do século: isto é, os desejos emancipatório que o governaram. Como diz Badiou, “Sabemos hoje que quando a Ideia está morta, o carrasco morre também. Resta saber se do voto legítimo de que morra o carrasco deve inferir-se o imperativo: ‘Viva sem ideia’.” (p. 180)
De fato, um livro espetacular que nos ajuda a entender não apenas o pensamento de Badiou mas algumas das questões que ainda, nesse século XXI, permanecem conosco e que nos obrigam a pensar.